sexta-feira, 19 de abril de 2002

LINgUAGEm CAnInA

Gregório Samuel acordou na segunda-feira e percebeu que seu coração
havia
parado de bater. Ele se lembrava vagamente de ter escutado as batidas
do seu
coração compassadas até parar. Mas pensava que tinha sido apenas um
sonho.

Levantou-se e se encaminhou direto para o banheiro. Olhou-se no
espelho. A
pele estava pálida demais. Até para ele, que tinha a pele bem clara.
Conseguia enxergar as pequenas veias do rosto, pescoço e colo. Todas
azuis.

Ainda se olhando, levou o dois dedos na altura da base do pescoço.
Bem no
centro. Entre os ossos pequenos que sustentam a cabeça. Queria pegar
uma
veia grande para perceber sua pulsação. Nada. Nem uma única batida.
Colocou

a mão no peito. No pulso. Na têmpora. Nada, nada e nada.

Era uma manhã cinzenta de inverno. Uma manhã suja de inversão
térmica. Uma
manhã que fecham-se as janelas para poder respirar. Gregório, por sua
vez,
não sentia nada. Nada diferente. Apenas não tinha mais as batidas.

Tinha ido dormir um pouco bêbado. Tinha saído com uns amigos e bebido
um
pouco de vinho. Ao deitar-se, lembrava de prestar a atenção como todo
corpo
estremecia com a força de seu coração. Adormeceu concentrado no
coração que
agora estava inerte.

Logo escutou umas batidas na porta. Era a sua mãe falando que ele
devia
acordar logo senão chegaria atrasado novamente no colégio. Ele até
poderia
responder. Mas não tinha vontade. Ficou sentado na cama, vestindo a
cueca
samba-canção e a camiseta branca, com a mão no peito.

Sua mãe girou a maçaneta e, antes mesmo de olhar, falou: "Gregório,
vamos.
Todo dia é isso. Você nunca vai aprender?" Nesse momento observou
Gregório e
sua cor não natural. "O que foi isso? Por que você está assim?"
Gregório só
respondeu que não sabia. Mas iria se arrumar para sair logo. Sua mãe
se
virou e fechou a porta. Já do lado de fora do quarto gritou para ele
se
arrumar rápido.

Entrou novamente no banheiro e tomou uma ducha rápida. Se vestiu como
de
costume, jeans, camisa da escola e casaco de moletom preto. O que
ressaltou
mais ainda sua cor um tanto azulada por causa das vasos e artérias.

Pegou sua mochila e saiu do quarto. Desceu correndo as escadas para
tomar o
leite e sair para a rua. Encontrou seu pai olhando o jornal que
noticiava
alguma coisa de futebol. Não reparou na irmã. Mas ela logo perguntou
o que
tinha acontecido.

"Pára com isso Ana Luisa. Deixe seu irmão em paz. Ele está atrasado
para a
escola, não está vendo?" disse a mãe. Gregório bebeu em um gole o
leite com
chocolate, pegou um pão com manteiga e foi se encaminhando para a
porta de
saída. Mas Ana Luisa entrou na sua frente e olhou bem fundo nos seus
olhos.
Ele parou e não conseguiu desviar. Ela deu um sorriso sarcástico e
tentou
segurar sua mão. Deu um grito de espanto e a largou. "Está fria."
Nesse
momento ele viu a vista escurecer e se virou para apoiar na mesa com a
cadeira.

Acordou com a empregada umedecendo seu rosto com uma toalha. "Cadê
todo
mundo?" perguntou Gregório. "Seu Pai foi trabalhar, sua irmã para o
colégio
e hoje é dia da Dona Lucinda ir visitar o orfanato. Você sabe não é,
como
Dona Lucinda é boa demais. Toda segunda-feira ela se reúne com algumas
amigas e vai visitar o orfanato. Sempre levando roupas e brinquedos."

Ele tentou se levantar mais novamente percebeu que cairia. Então
resolveu
permanecer deitado mais um pouco até que as forças voltassem por
inteiro. "O
que aconteceu?" perguntou mais uma vez. "Eu cheguei e você estava
deitado no
sofá. Dona Lucinda estava só me esperando para poder sair. Parece que
você
desmaiou."

Gregório olhou para o relógio da sala, um relógio-cuco que pertenceu
a seu
bisavó, que foi trazido da antiga Thecoeslováquia. "Meu filho"
começou a
falar Alzira, a empregada, "acho que você tem que tomar um sol, está
muito
pálido. Até parece que está morto." Ele tentou virar o corpo na
direção de
Alzira, mas conseguiu no máximo virar os olhos. Ela estava parada na
entrada
da cozinha, com as mãos na cintura, segurando uma colher de
pau. "Bom, vou
voltar para a cozinha, qualquer coisa me fale."

Ele voltou os olhos para o relógio. 9 e meia da manhã. Pelos seus
cálculos,
tinha ficado desacordado por mais de uma hora e meia. Rapidamente
levou a
mão no peito. Nada. Fechou os olhos, para tentar dormir de novo. Mas
não
conseguiu. Tentou se sentar. Sentia-se fraco. Levantou-se em direção
da
cozinha, onde ficava a escada para o andar superior. Parou em frente a
geladeira. Abriu, pegou a garrafa d'água, bebeu no gargalho. Fechou a
porta
e subiu as escadas. Entrou no quarto e fechou a porta.

Deitou na cama. Sentia frio. Muito frio. Ligou o rádio. Notícia de
engarrafamento. Mais de 100 km de carros parados. Mudou de estação. Um
locutor lia uma carta de um ouvinte para uma namorada que o tinha
deixado,
no fundo uma música romântica, anos 80. Mudou de estação, uma rádio
gospel.
Desligou o rádio.

Tentou gritar pela Alzira, mas o ar não saia dos seus pulmões. Então
reparou
que não mais respirava. Não se lembrava de quando tinha parado. Mas
não
precisava mais puxar o ar. Nem expirar. Sentia os olhos pesados.

Acordou com sua mãe gritando para ele tomar vergonha na cara. Que em
plena
segunda-feira ele ficava em casa dormido. Se não tivesse saído ontem
estaria
bem. Era mesmo um vagabundo. Ia mandar seu pai colocá-lo na loja para
ele
aprender o que era bom. Não passaria mais as tardes em casa sem fazer
nada.
Ele tinha que aprender que a vida não era a facilidade que ele
pensava ser.
Já tinha 16 anos. "Pensa que mamãe e papai vão te sustentar para
sempre?
Pois está muito enganado, hoje mesmo falo com seu pai. No máximo
semana que
vem, você vai trabalhar com ele."

Gregório até queria responder. Mas a voz não vinha ao seu mando.
Sentia mais
frio e cansaço. Sua mãe havia saído do quarto batendo a porta com
violência.
Parecia furiosa. Olhou para o despertador na sua mesa de cabeceira.
Meio
dia. Lembrou que não havia comido o pão no café-da-manhã. E não
sentia fome
nenhuma. Tentou se levantar mas não conseguiu. Então permaneceu
deitado
mesmo. O único movimento que fazia com destreza era abrir os olhos.

Antes de fechar os olhos novamente, escutou um grito da sua mãe para
ele
descer e almoçar. Ela dizia que não ia repetir o chamado. Se ele não
descesse agora, ficaria sem almoço. Gregório fez um esforço sobre
humano,
mas o máximo que conseguiu foi virar de lado na cama. Fechou os
olhos. Se
sentia cansado. No fundo da sua cabeça escutava um som de alguém
subindo
escadas. E a uma voz feminina. Conhecida.

Sua mãe abre a porta repentinamente com a voz alterada. "Gregório, o
que
houve com você." Ela pára. Ele abre os olhos. Percebe ela se virando.
Escuta
ela falando algo com Alzira. Está muito longe, mas ele presta a
atenção. Ela
reclama algo do cheiro. Pergunta se Alzira não tinha limpado o quarto
de
Gregório direito.

Gregório sente a boca seca. Os olhos ficarem sem lágrimas. O nariz
ressecado. Estava de lado para a porta. Quando cochilou mais uma vez.
Acordou com Alzira entrando e colocando o prato de comida na mesa de
cabeceira. Só abriu um dos olhos. Alzira não demorou muito tempo,
virou-se,
colocou a mão no nariz e saiu.

Ele fechou os olhos novamente. Mas não dormiu rapidamente. Escutava
sua irmã
no quarto ao lado. Ela tinha ligado o som e colocou um CD. Ela
dançava e
cantava alto demais. As janelas tremiam. Ficou um bom tempo escutando
sua
irmã balançando e gritando. Às vezes quando estava conseguindo
adormecer,
escutava batidas na parede e Gregório acordava de sobressalto.

Mas era segunda-feira e Ana Luisa tinha balé. Não demoraria muito e
sua mãe
a levaria. Ele também tinha que sair. Tinha curso de inglês. Mas
achava que
não conseguiria levantar-se. Dormiu novamente.

"Mãe que cheiro é esse?" gritou Ana Luisa do corredor para o andar
debaixo.
Gregório quase saltou da cama e caiu no chão. "Ana Luisa, anda
rápido. Você
está atrasada." Ana Luisa ainda reclamou que a mãe protegia Gregório.
Que
ele não era obrigado a fazer nada. Que ele podia ficar dormindo. Que
podia
faltar o curso. Mas a voz dela foi diminuindo até sumir. Gregório
voltou a
dormir.

Quando Alzira entrou para pegar o prato de comida que tinha deixado no
quarto de Gregório, encontrou-o intacto. Ela o tirou e saiu correndo,
para
fugir do mau cheiro. Gregório ainda dormia.

Dona Luzinda chegou em casa de noite, reclamando que o dia tinha sido
horrível. Encontrou Seu Rodolfo em frente a televisão fumando os seus
cigarros. Perguntou a Alzira por Gregório. Ela disse que ainda estava
no
quarto. Luzinda, então, subiu voando as escadas e quase derrubou a
porta. E
Gregório continuava dormindo. Chegou mais perto gritando para ele
acordar,
mas nada conseguia. Reparou na temperatura dele, muito baixa. Na sua
cor, um
tanto azulada. E no seu cheiro, desagradável. Tirou as cobertas. E
Gregório
continuou dormindo. E nunca mais acordou.

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