sexta-feira, 19 de abril de 2002

linGUAGeM caNInA


São João do Rio Vermelho era uma cidade pequena do interior do Rio de
Janeiro. Um lugar onde as pessoas se conheciam pelo nome. E onde alguns
destinos se confundiam e se cruzavam.
Existia uma rua principal. Onde moravam as principais pessoas da cidades. Os
mais ilustres. Todo mundo que era importante morava ali. E só morava ali
pessoas importantes. Menos eu.
Tinha uma praça. Uma igreja. Essas coisas. Mas SJRV tinha coisas diferentes.
Havia várias festas todos os finais de semana. Sempre tinha uma festa. O
lazer dos jovens da cidade era freqüentar essas festas e ver as mesmas caras
sempre.
Algumas pessoas se sentiam importantes em São João do Rio Vermelho. Porque
ali todos os conheciam. Outras não queria ficar na cidade porque se sentiam
maiores que a própria cidade.
Um grupo fechado organizava as festas e encontros. A Sociedade. Era muito
difícil, não sendo da Sociedade, entrar nela. Quem era do grupo ia para o
clube. Gostava das mesmas coisas. E era o foco de ação de tudo que se movia
na cidade.
Eu não fazia parte desse grupo. Mesmo morando na rua principal, mesmo
freqüentando os mesmo colégios, mesmo com meus irmãos sendo amigos de
pessoas da Sociedade. Não fazia parte do grupo.
Quando era jovem, cheguei a querer entrar no grupo. Queria conhecer todas as
meninas da Sociedade. Todas as meninas bonitinhas, riquinhas e estúpidas.
Queria fingir ser importante. Queria ser conhecido. Por isso, várias vezes,
forjei um personagem que enganou muitos. E ainda engana.
Forjei que era igual a eles. Fingi que agia como eles. Disfarcei-me de homem
comum. Andei como um qualquer. Entrei em uma academia, comprei roupas de
marcas, tentava conversar sobre as mesmas coisas que eles. Mas essa era a
parte mais difícil. Mesmo quando estava no ápice da minha falsidade, vi que
não podia ser tão medíocre.
Na época ficava me sentindo culpado. Por ter que me submeter a isso. A essas
privações. Hoje tenho vontade de rir. Sei que temos que passar por testes e
provas. Temos que ser ridículos algumas vezes na vida para aprender a cair
em pé. Como os felinos.
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Um dia chegou na cidade uma família vindo de Curitiba. Pai, mãe, filho e
filha. Vieram porque o Pai foi transferido para a filial da S-química de São
João do Rio Vermelho. A matriz era no Paraná. Era comum esse tipo de
transferência acontecer.
A maior característica da mãe era que ela era dona-de-casa. Daí você tira
como ela era. Ou como agia e pensava. A menina se chamava Juliana. Tinha 21
anos e começou a namorar com um cara da Sociedade logo. Ele tinha uma loja,
um comércio.
O garoto se chamava Guilherme e também começou a namorar uma menina da
Sociedade. Ela se chamava Ana Cláudia. Era uma garota linda. Pele bem clara,
cabelo castanho puxado para o vermelho. Corpo fenomenal. Cintura bem fina. E
uma voz sensualmente rouca.
A família Paraná era diferente do resto da cidade. Por mais que eles
freqüentassem os mesmo lugares. Por mais que eles tivessem relacionamentos
estreitos com pessoas da Sociedade. Eles (era perfeitamente perceptível)
encaravam a vida de uma forma diferente.
Não é fácil descrever. Não se metiam em fofocas, por exemplo. Tinham
consciência de cidadão. Enxergavam mais longe. Esperavam mais da vida do que
a cidade podia oferecer. E, principalmente, tinham classe. Não era algo
forçado, ou sem naturalidade.
Para usar um exemplo bem batido, com eles o simples caminhar chamava a
atenção. No meio de um churrasco ou qualquer outro tipo de confraternização,
a família Paraná se destacava.
Guilherme e Ana Cláudia formavam o mais belo par que poderia existir na
cidade. Guilherme com sua classe e Ana Cláudia com seu par de pernas. Viviam
em eterno estado de lua-de-mel. Nunca ninguém viu os dois discutirem. Nunca
ninguém soube de nenhum desentendimento. Os dois, segura o clichê, pareciam
ter nascido um para o outro.
Um dia, no meio de uma festa, Ana Cláudia apareceu sozinha. Logo correu o
boato que eles tinham terminado. Todos os homens se preparavam para tentar
galantear a melhor, a mais bela, a mais cobiçada mulher da festa. Eu
incluído.
Logo depois chegou Guilherme e voltamos atrás. Ele se dirigiu para o lado
oposto ao que ela se encontrava. Parecia que os dois haviam brigado mesmo.
Mas, nestas condições, os homens de São João do Rio Vermelho respeitam uma
regra. Não se expõem na frente de todos. Preparam o terreno para o futuro.
Lobbies e negociações começaram a ser feitas no meio da noite. Telefones
circulavam de um lado para o outro. Cochichos, conversas ao pé do ouvido,
informações sigilosas. Tudo para obter alguma forma de se aproximar de Ana
Cláudia.
Saí da festa com o telefone dela. E com a promessa de uma grande amiga dela
de confirmar o fim do romance para depois começar a construir minha imagem
para Ana Cláudia.
Passou uma semana e toda a cidade voltou ao normal. Tirando o fato de que os
assuntos ou começavam ou terminavam na informação da separação dos dois.
A amiga confirmou comigo o fim do relacionamento e me deu carta branca para
poder entrar em contato com Ana Cláudia. Sabia que uma aproximação frontal,
direta, seria ineficaz devido as condições da menina. O melhor seria rodear
a presa esperando o melhor ponto para o abate.
Algumas festas vieram depois e comecei a ficar mais próximo do meu objetivo.
Comecei a trocar olhares, palavras, beijos carinhosos no rosto. A minha
presença já era sinônimo de sorriso. O solo estava pronto. As sementes já
tinham sido jogadas. Agora só faltava um pouco de chuva para termos uma boa
safra.
Quando percebi que estava brotando pequenos arbustos, percebi que deveria
esperar o melhor momento para a colheita. Qualquer problema nessa fase é
sinônimo de perda de todo o fruto.
Não podia atacar num lugar que imperasse um círculo de amizade comum ao meu
e do Guilherme. Poderia me trazer prejuízos na hora da negociação da venda
da produto já pronto. E na compra de novas sementes.
Por sorte, a bonança veio na hora correta. Soubemos que haveria um incentivo
governamental. Numa cidade vizinha, aconteceria uma espécie de feira de
comércio de grãos.
Viria gente de todas as partes do Brasil e até do Mundo. Só faltava saber se
Ana Cláudia iria. Mesmo que toda São João do Rio Vermelho fosse, o ambiente
era propício para sumiços. Nós poderíamos simplesmente desaparecer na festa.
E, para confirmar, toda São João do Rio Vermelho foi na Feira. Inclusive eu,
Ana Cláudia e Guilherme.

Ao chegar no parque de exposições, sabia que a marcação devia ser justa para
que o atacante não conseguisse penetrar na grande área. E, com a bola nos
pés, o zagueiro saberia distribuir bem a bola para conseguir um
contra-ataque.
Levei Ana Cláudia para um lugar onde só poderíamos ouvir nossas vozes. Nada
nem ninguém apareceu. Durante toda a noite. Voltamos de manhã cedo para
casa.
No outro dia liguei para ela, relativamente, bem cedo. Ela já estava
acordada e pediu, com uma voz nervosa, para que eu fosse até a casa dela.
Ela morava na minha rua e não levei cinco minutos para chegar lá.
Ela disse que, mesmo estando separada do Guilherme, só conseguia pensar
nele. Não queria ficar com mais ninguém porque só via futuro com ele.
Mulheres e romantismo. Um foi feito para o outro.
Sai de lá com uma espécie de frustração. Melhor, com um sentimento de
desperdício. Desesperança. Não tinha nada melhor na cidade. Como almejar
algo, então? Tudo havia perdido a graça.
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Dois meses depois, eles não tinham voltado. Mas Ana Cláudia também não tinha
começado a namorar ninguém mais. Ou estava escondendo o jogo, ou estava
mesmo esperado Guilherme.
Este por sua vez, também estava sozinho. Apesar das investidas de quase
todas as meninas e mulheres de São João do Rio Vermelho. Porém, é bastante
compreensível. Depois de Ana Cláudia, quase nada ali tem gosto.
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Os dois, nesses meses separados ainda se encontraram várias vezes. Guilherme
ia na casa de Ana Cláudia. Os dois se ligavam. Mantinham um relacionamento
bem íntimo. Mas não era mais como há um ano atrás.
Em um domingo específico. Guilherme estava bem deprimido. Melancólico mesmo.
Ele sabia que gostava de Ana Cláudia. E sabia que ela o amava. Não sabia o
motivo de estarem separados. Resolveu, então, para animar, dar uma volta na
sua moto. Ele tinha uma moto azul metálica que fazia 200 km por hora.
Deu uma passada na casa de Ana Cláudia e os dois conversaram por horas. Ele
saiu de lá se sentindo melhor. Ela disse que tinha pensado melhor, durante
esse período separados, e percebeu que só poderia ser feliz ao lado dele. Ou
qualquer coisa parecida.
Guilherme resolveu ir para a estrada para saber qual era a verdadeira
potência da sua moto. Entrou na estrada e rodou a mão. Foi passando as
marchas e acompanhando o velocímetro responder aos apelos do acelerador.
Numa curva fechada, havia um desnível no solo onde o pneu dianteiro da moto
bateu. 195 km/h. A moto perdeu completamente a estabilidade e cuspiu o corpo
dele para cima. Ele estava de capacete. Bateu a cabeça na placa de
sinalização superior. Onde dizia "Cuidado, pista escorregadia".
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Seu enterro foi no mesmo dia. Toda São João do Rio Vermelho compareceu.
Menos eu que não fiquei sabendo da sua morte no dia. Houve muito choro.
Muito apelo. Foi quase um evento. Para se mostrar e para ser visto. Ana
Cláudia parecia ser a única pessoa sincera dali. Tirando a família Paraná.
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Eu fui o último homem da vida de Ana Cláudia. E não me sinto culpado por
isso. Não acho que deveria me sentir. Depois ela virou lésbica convicta.
Detesta homens. Ou freira.


::ronaldo pelli ::

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