sexta-feira, 19 de abril de 2002

Velório


Por mais que fosse tátil, o velório não me parecia real. Parecia que minha
imaginação estava toda hora me enganando. Quando tentava raciocinar o motivo
que me levou para ali, ela me distraia com algo. Inclusive a idéia desse
texto.
Todas as pessoas foram lá. Mas a atriz principal não estava desempenhando
seu papel. Ela estava deitada. Com uma vontade louca de rir de todas aquelas
caras tristes e olhos inchados.
E o próprio velório só tinha mesmo o papel de velório. Ele só queria que as
pessoas ficassem tristes. Não lembrava em nada a menina que tinha a
gargalhada mais linda do mundo. E que sorria sem fazer esforço.
A cerimônia era fria e completamente distante. Não conseguia identificar
nenhum sinal da Lua ali. Qual era a intenção disso? Fazer com que as pessoas
ficassem tristes? Acho que não. Acho que nem tinham intenção nenhuma. Aliás,
não acho nada.
Fico me policiando para não sentir nada que seja completamente egoísta. E
foi fácil não sentir falta dela naquele velório. Algo tão impessoal. Tão
comum. Tão triste. Ela não era, em nenhum momento triste.
Tento me lembrar de momentos dela chorando. Sei que ela chorou. Lembro que
ela chorou. Só que a imagem não vem na cabeça. Sei que ela já ficou triste
ao ponto de chorar. Mas não fazia parte dela isso. Não foi passível de ser
gravada como lembrança da Lua por não ser parte dela. A tristeza não fazia
parte dela.
Se dizia incompleta. Ou qualquer outra palavra que defina a impossibilidade
de fazer mal às pessoas. Dizia que um dia, queria ser igual as irmãs, que
não conhecem o significado da palavra fidelidade com os namorados. Mas não
conseguia. Não conseguia magoar as pessoas. Nem se quisesse.
Foi dela a idéia do meu apelido na faculdade. "Belo". Nome do vocalista de
uma banda de pagode brega da época. Claro que como calouro, não deixaram que
o apelido fosse um elogio e ele se transformou no que é hoje. Foi dela os
melhores elogios que recebi na minha vida.
Eu costumava chamá-la no início do corredor da faculdade para o outro lado
de "a mulher mais linda do mundo". E ela era. E ela ainda é. E todas as
vezes que fecharmos os olhos e colocarmos a mão no coração perceberemos que
ela está lá. Sempre linda.
Ela era uma menina com uma cor vibrante. Adorava praia. Emanava uma luz
muito forte de dentro de si. E no velório era tudo cinza e preto. Não era
ela ali. Parecia que tinham colocado uma imagem dela, mal feita, para que
pudéssemos rezar. Como se ela tivesse virado santa.
Mas era tão distante da realidade dela. Ela não gostaria nunca de ver
pessoas chorando ao seu redor. Devia estar esperando que alguém lembrasse e
fosse comprar a sua garrafa de sangue de boi. E colocasse um som para toca
Jamiroquai.
No enecom do ano passado, ela fez uma oficina de espumagem. Os alunos aproveitaram e produziram as
próprias fantasias para a festa que aconteceria no último dia. Ela fez uma
fantasia de floresta.
Ela era capaz de produzir muito com pouquíssimo. Adorava reciclagem. Fazia
os melhores trabalhos da faculdade. Devo o meu melhor CR para ela. Lembro de
um trabalho que discutimos muito porque não concordamos na sua formulação.
Tiramos 7. Ela ficou puta comigo. Foi a pior nota dela da faculdade. Mas não
guardava rancor. Me perdoou logo depois.
Tenho várias estórias que se transformam na história agora. Mas o que mais
me orgulha é de ter sido amigo dela. A Lua era uma mulher que você se sentia
orgulhoso por ficar perto. Por saber que existe e você pode falar com ela.
Eu sei que não mais por enquanto. Mas isso realmente não importa muito. Se
ela já existiu, já foi o suficiente.
Ela era imprevisível. Capaz de fazer coisas que surpreendiam por ser tão
ousadas mesmo que fossem bastante simples. Uma simplicidade cativante.
Simplesmente genial. Ela era capaz de cantar parabéns para ela mesmo, por
exemplo. Só para comemorar o seu aniversário. No meio de um velório, se
preciso.
E foi o único momento que ela esteve presente lá. Quando rolou lágrimas no
rosto de todos. Não de querer que ela estivesse junto. Não de saudade. Não
de qualquer outro tipo de sentimento egoísta. Porque ela não era egoísta e
nesse momento todos compreenderam. Mas de alegria. De felicidade por tal
menina ter existido no meio de todos nós.

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