quarta-feira, 19 de junho de 2002

Ordem e desordem. Novamente. Ordem e desordem. Era uma pequena roleta com apenas esses dois resultados. Ora um, ora outro. É sempre assim, disse um homem que acabara de abaixar o jornal. Todos nós apreensivos em volta da mesa. E ele ali, no canto, lendo jornal. Deu-me uma raiva logo no início que minha razão soube controlar. Meu ímpeto era ir atrás dele e estrangula-lo. Como ele poderia estar parado no canto? Você está fora da moda, meu rapaz, ele disse olhando para mim. Não devemos travar nossos instintos, ele continuou a falar. Levantou-se e colocou o jornal na sua cadeira como se estivesse guardando lugar para alguém. Ergueu os pulsos em sinal de combate. Percebi que suas pernas fraquejavam. Mal se agüentava em pé. Os outros tinham parado de reparar na roleta e miravam-nos. Senti-me um tolo por ter vontade de espancá-lo. Ele abaixou a guarda, mas manteve os olhos grudados nos meus. Sente-se melhor agora, ele me perguntou. Lutar contra os ímpetos é um ato de extrema inexperiência, ele continuou falando, Sumir com as vontades é impossível. Você tem que aceita-las naturais como são. Use a cachola nesse momento, falou e apontou a cabeça com um dedo. Ele era um velho de pele negra enrugada, cabelos quase totalmente brancos e crespos e um bigode falhado em cima da boca torta. Saiu capengando da sala. E eu fui atrás.

Ele se encaminhou para uma sala onde nunca eu tinha estado antes. Uma sala com móveis em madeira antiga escura e quadros, vários quadros na parede. O velho caminhava na minha frente capengando. Ia olhando e apontando para os quadros. Vê esses quadros, disse por fim. Apenas balancei a cabeça afirmativamente. Tinha certeza que ele sabia que eu reparava em cada detalhe dele. Todos diferentes entre si, completou. Mas fazem parte da mesma estrutura. Estrutura que eu costumo dividir em duas partes: avanço e cristalização. Você, ele virou-se e apontou um dedo indicador grosso para mim, acha que estamos vivendo uma época das trevas, não acha? Não respondi. Uma era que não se pode mais pensar. Que todas os formatos do raciocínio são tolhidos, onde a irracionalidade reina. Não tenho as respostas para as suas dúvidas. E se tivesse, diria que não as tenho. Ele continuava andando por um corredor com portas que eu não podia imaginar, nem conseguiria naquele momento, aonde levariam. Ele continuava andando capenga. Reparei, pela primeira vez, na bengala que ele se apoiava e nas calças pretas puídas. Venha comigo, ele disse e eu avistei, por cima do ombro dele, uma porta na frente.

Entramos pela porta com rodapés de madeira escura. Era a maior seqüência de estantes de livros que já pode ter existido no mundo. Eram incontáveis. Inconcebíveis. Perdia-se no horizonte. Você acha que tudo que já podia ser inventado deve estar aqui, não? Ele me perguntou mais uma vez, e eu não o respondi, como de costume. As estantes eram altíssimas. Andávamos pelo corredor, que me parecia principal, e logo depois descobri ser apenas um terciário, e pude enxergar algumas pessoas em cima de escadas para poderem alcançar os últimos volumes das estantes. Há muita coisa aqui, disse, muita coisa. O que você lembrar que existe está aqui. Provavelmente todas as obras catalogadas do mundo estão aqui. Está é a coleção de todas as bibliotecas do mundo. Parou de repente em uma esquina e apanhou um livro a esmo. Folheou-o e o fechou. Pegou outro e repetiu a seqüência. Virou-se e me entregou. Tome, disse apenas. Um livro se chamava simplesmente A e continha letras jogadas sem ordem. Não é no seu idioma, disse ele ao reparar minha estranheza perante o conteúdo do livro, nem em nenhum outro que existe e que pessoas falam. Não é um idioma. Não é nada. São apenas algumas letras jogadas sem ordem dentro de papel. O outro era uma versão da Ilíada. Todas esses livros já foram criados, disse ele. E nós os misturamos e os tiramos de ordem, e colocamos letras sem nexo em seqüência. E repetíamos frases até terminar. Livros inteiros só com uma frase. Depois só com palavras, depois só com letras e rabiscos. Até há um livro totalmente em branco. Ele fez um pequeno silêncio e continuou andando.

Já catalogamos tudo. Disse ele. Está na hora de criarmos o novo. Para podermos catalogar o que for feito. Essa é a época da irracionalidade, não acha? Nada mais irracional que fazer algo impensado. Nada que o raciocínio pudesse ter captado. Algo inexplicável. Vamos escrever nas entrelinhas. Vamos esmiuçar cada frase, esticando-a até o limite, sem sair do seu limite. Ou vamos ultrapassar o limite, vamos desistir de termos vasilhames. Vamos criar.

Tínhamos chegado na porta. Ele apenas girou a maçaneta e bateu no meu ombro antes que eu pudesse falar qualquer coisa. Comecei a descer as escadas na frente da porta principal e pude escutar ele falando, Desconstrua a ordem e crie a desordem. Organize a desordem e ache a ordem. Desconstrua a ordem e crie a desordem. Organize a desordem...

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