terça-feira, 23 de julho de 2002

o telefone

O telefone está ali parado em cima da mesinha da sala, eu me lembro bem dele. Silencioso, quieto, humilde, quase que passa despercebido. Ele tem o poder de definir o meu futuro. Ele pode dizer quais passos vou tomar ou pode simplesmente calar-se. Silenciar-se. O que, para mim, já é uma resposta.

Eu? Eu estou parado ao lado da geladeira, apoiado no umbral da porta da cozinha, olhando o telefone. Bebia um pouco d’água num copo grande que tenho. A cada golada de água eu parava e voltava meus olhos para o telefone. Não esperava que ele tocasse. Ele não iria tocar. Mas olhava para o telefone. Olhava para ele como se ele fosse um profeta e me pudesse me passar o que eu deveria fazer. Como se ele soubesse e desvendasse o meu destino e, ainda por cima, pudesse me contar.

Tinha duas possibilidades claras na minha cabeça. Um, ligar para ela e convida-la para ir ao show da minha banda no fim-de-semana. Dois, não ligar. Simples assim.

Não, não é nada simples. Primeiro se considerarmos que é ela. Não é simples porque não posso simplesmente pegar o telefone e discar. No caso dela não seria o certo. Digamos que há um ano, mais ou menos, nós não nos falamos direito. Simples assim.

Sábado passado nos encontramos. Foi na saída de um filme. Um filme francês bacana que estreou aqui há duas semanas. Fui sozinho e cheguei atrasado, como na maioria das vezes. Sentei numa das primeiras cadeiras, mas já não me importo com isso. Chego até a gostar mais das primeiras fileiras. Acho que conseguimos ver os atores ainda maiores na tela. Na saída, passei por ela ainda dentro do cinema. Ela estava com uma amiga.

O primeiro encontro dos olhares parecia uma reprise de filme. Ele, meio constrangido e meio envergonhado por causa da ausência de quase um ano. Ela, um pouco surpresa com a coincidência, um pouco indignada com a ausência, mas que, sem querer, deixa saltar um pequeno sorriso.

Com o sorriso, percebi que o encontro seria amistoso. Oi, disse, Oi, ela disse. Como vai, eu disse, Há quanto tempo, ela espetou. É, faz um bom tempo, me defendi, Vou bem, e você, ela respondeu. Continuo na mesma empresa, ela disse, Eu mudei minha vida, eu respondi. Você está sozinha, eu perguntei, e depois, numa tentativa de remendar, continuei, Digo, no cinema, ela riu um pouco e respondeu, Estou com ela, apontou para uma amiga ao lado que eu nunca tinha visto antes. Oi, disse para a amiga, Oi, ela me respondeu.

Sorrimos um para o outro para mostrar que não éramos hostis e esperamos o silêncio desse momento. Logo percebemos que o cinema estava ficando vazio. Propus que nós saíssemos dali. Sugeri que as duas fossem na minha frente e tentei ficar o mais próximo dela. Então, na saída da sala de projeção fiz uma pergunta simples, Vocês vão fazer alguma coisa agora, no que elas responderam quase juntas, Nada, disse ela primeiro, Não, falou a amiga depois. Poderíamos, pelo menos, tomar um café, comer alguma coisa aqui mesmo, o que vocês acham, foi a minha proposta. Elas olharam uma para a outra num diálogo que só mulheres sabem fazer com perfeição e responderam para mim com acenos positivos de cabeça e mais sorrisos.

Sentamos num canto do saguão. Pedi um cappuccino para mim e fui acompanhado por ela. A amiga pediu um mate natural. Começamos a conversar e não parecia que eu estava sumido há um ano. Por mais que tivesse desaparecido, ela parecia não se importar. Ela parecia não ter mudado muito, o que de certa forma era ruim para mim. Já ela me achou diferente, nas palavras dela. Perguntei se era bom ou ruim aquilo, ela disse que estava apenas diferente.

Nossa conversa fluía sem nenhum problema. Muito porque ela quase sempre concordava comigo. Talvez isso tenha sido o maior motivo para que nós nos separássemos há um ano atrás. Começávamos a conversar e, ao final de alguns minutos, parecia um monólogo interpretado por mim. Sentia que faltava mais iniciativa dela. Sentia que faltavam discussões, trocas de idéias, de opiniões, de conversa. Sentia que faltava outra voz.

Por mais que tentasse contemplar a amiga, ela logo se sentiu sobrando na nossa mesa. Percebi alguns olhares impacientes da amiga para ela, ou uma espiada no relógio, ou uma encostada na cadeira para demonstrar insatisfação. Ela não percebia nada. Parecia que estava aprisionada em outro mundo e, não quero acreditar nisso, mas, parecia que o motivo era eu.

Para não incomodar mais a amiga e por achar que o café já tinha rendido tudo que devia e poderia render, decidi ir embora. Assim as duas ficariam livres para fazerem o que quiserem. Antes, porém, disse para ela que deveríamos nos encontrar mais vezes. Ela abriu o sorriso que tanto gostei em outras épocas e que ainda acho lindo.

Não sei nem se menti. Talvez eu queira realmente encontra-la mais uma vez. Ou mais vezes. Talvez eu queira ter um relacionamento estável e prolongado pela primeira vez na minha vida agora. Talvez ela seja a mulher perfeita para esse tipo de pensamento.

E então eu lembro que pensei nas mesmas coisas no ano passado. Repenso se eu não mudei a esse ponto, ou se ela não mudou alguma coisa que pudesse dar certo nesse ano. As situações nunca são iguais, eu sei, e poderia haver uma sucessão de fatos que acabariam empolgando a relação e fazendo com que ela mudasse.

E novamente me pego me perguntando, aqui, com esse copo de água do lado do teclado, ao bater em cada letra, ao tentar desvendar esse mistério que é o relacionamento humano e sabendo que ele não me dará a resposta.

Eu sei que bastava ligar para ela. Basta que eu diga, Oi, tudo bom, olha, eu vou tocar no sábado, você quer ir ver, e ela diria, Claro, aonde, sim, vou sim. Mas, será que vale a pena, me pergunto. Será que eu aceitaria cada detalhe da vida dela, será que eu gostaria dos seus defeitos, será que a abraçaria quando ela estivesse resfriada, será que eu teria paciência quando ela estivesse de TPM, será que eu me importaria com as suas ausências nas nossas conversas, será que eu ficaria dando pequenos beijos após o sexo da maneira que ela gosta, será que enfrentaria todos os nossos problemas juntos. Será?

Não sei a resposta, mas qualquer que seja, eu não acredito nela. Eu posso desconfiar apenas. E se eu acho que eu continuaria a mesma pessoa que sou, sem abrir mão de nada, se eu suspeito que eu posso larga-la como fiz no ano passado, se eu imagino que eu posso magoá-la novamente, não acho que vale a pena. Por mais que a visão dela me tente, por mais que a queira, hoje, agora, nesse exato momento, não acho que posso envolve-la novamente nas minhas caraminholas. O telefone vai ficar quieto ali no canto dele mais uma vez.

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