quarta-feira, 18 de setembro de 2002

Dúvidas

I

De frente para o palco, antes do show acabar, ela me disse que ia embora. Despedimo-nos simplesmente e a observei caminhar até o lado de fora. Deveria ir embora?, perguntava-me. Se fosse, naquela hora, poderia encontra-la, o que não queria dizer nada. Ou poderia provar que eu só estava ali por ela. Se ficasse, teria que agüentar mais um pouco do show que não era bom. Que não estava gostando.

Havia ficado de um lado do teatro com amigos, enquanto ela estava do outro lado, com os dela. Ela me visitava. Apenas pequenas visitas. Disse-me que gostava de ficar livre.

Foi apenas um instante, um estalo que dei na sua frente e ela parou para falar comigo. Pequenos olhos rasgados. Por que você não me ligou?, perguntei. Fui na sua página, ela disse. Gostei dos seus textos, ela continuou, mas achei intelectulóides demais. Nada pior. Eu não acho. Ela sorriu. Mande-me um e-mail então, sugeri. Ela apenas sorriu.

Deveria ir embora?, me perguntei novamente. Já era hora de ir. Falei com todos os meus amigos e sai, que dava sinais de final.

No meio do show, encontrei com um sujeito que pediu para continuar a escrever-lhe. Ele tinha um site onde podia escrever sobre qualquer coisa. Ele gostava dos meus textos sobre cinema. O site voltará a funcionar ainda nesse mês, disse-me. Tentei pensar em algo que pudesse falar, mas nada era interessante.

Ela vinha na minha direção. Não pude deixar de acompanha-la. Aquela pele morena que queimava a minha ao menor toque. Aquela boca em formato de coração. Queria que ela estivesse comigo. Agora. Mas ela ainda caminhava. Parou antes de mim. Conversou com um sujeito. Percebi que o conhecia. Os dois riram. Passou na minha frente. Ela sabia que estava ali só por causa dela. Sabia, será que sabia?, duvidei no momento. Nós não conversamos. Não sabia o que falar. Ela se virou para o palco. Arrisquei, O show, mas interrompi. É ótimo, ela completou, não acha? Acho, menti. Ela dançava na minha frente. Quase me ignorava. Queria curtir, como dissera.

Deixei o primeiro ônibus passar. Deveria tomar que ônibus?, me perguntava. Será que o próximo iria demorar? Ou ele seria o mais rápido, o mais seguro e teria os melhores personagens? As dúvidas assombravam-me. Toda hora que eu solucionava alguma coisa, outra pergunta entrava na minha frente. Eu queria ir para casa. Queria dormir. Mas eu poderia apagar tudo o que havia me acontecido no dia. Ou poderia escrever. Mas meu computador estava quebrado. Queria sair dali.

II

Na semana anterior no bar, sentei cedo com alguns amigos do início da faculdade. Pessoas que me conhecem. Vi a menina. A conversa na minha mesa acontecia sem mim. Olhava para ela e voltava, de vez em quando, para pincelar algum comentário.

Meti a mão no bolso e catei algumas moedas e três notas amassadas. Uma de cinco e duas de dois. Era o meu único dinheiro para o fim-de-semana. E bebia já na quinta-feira.

O tempo voou como voam as melhores horas. Novos companheiros chegaram e os antigos foram embora. Eu continuava com meus olhos nela. O garçom, um conhecido já, chegou com um papel rosa amassado na mão. Apenas escrito, Olá.

O que deveria dizer, falar, escrever? Quais seriam as palavras que poderiam me diferenciar de todos que me circundavam? Como ser preciso e incisivo sem perder a delicadeza? E, me perguntava, era necessário ser delicado com ela? Realmente não a conhecia. Não conhecia ninguém. Todas as frases poderiam soar como frases feitas. Nada além do mastigado. Respondi, Olá. Apenas um olá solto no canto oposto do papel.

O papel ficou parado. Ela não me devolveu. O rosto dela, um rosto triangular, ria junto com a boca e os pequenos olhos rasgados. Esqueça tudo o que foi dito. O melhor sempre será escrito. Tentei. Que tal falado, me respondeu.

Ela havia comprado um vinil do Baden Powel. Quem compra um vinil do Baden Powel, hoje em dia? Eu gosto do Baden Powel, falei para ela. Ela sorriu com o rosto.

Todos foram embora. Ficamos nós dois. Deveria conversar algo. Gaguejei. Abri minha bolsa e apanhei um texto que havia imprimido no dia. Era sobre um aniversário de uma amiga que não pude ir. Entregar o texto era uma boa decisão?, a pergunta viajava na minha cabeça, Será que eu deveria ter feito isso?, Qual seria a melhor coisa a fazer?, Quem era essa menina que estava na minha frente?, O que ela queria?, Para que ela existia?, Para quem ela existia? Estiquei meu braço e coloquei os papéis nas mãos dela.

A cerveja já turvava minha visão quando ela sugeriu irmos embora. A levei no ponto do ônibus dela. Beijamos-nos. E ela foi embora.

III

Ontem, sentamos numa cantina da faculdade para conversar. A encontrei na escada. Eu descia, ela subia. A minha pele queimava ao lado dela.

Ela me contava casos da vida. Coisas que se contam todos os dias. Nada interessante. Não sabia o que dizer. Tentei ser natural. Mas engasgava. Tentei falar de histórias cotidianas, mostrar como éramos parecidos. Nós não podemos fazer nada juntos, ela me interrompeu, Eu quero apenas curtir.

A liberdade é a maior prisão. Não sugeri nem disse nada. Não tirei nem meu sorriso do rosto. Daqui a um ano e meio, quem será eu?, ou ainda conhecerei essa menina?, me questiono.

Detesto a praticidade, falei no ar sozinho quando caminhava por um corredor. Mesmo sendo o mais prático que conheço, detesto isso. Tudo parece ficar raso demais. Simples demais. Óbvio demais.

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