terça-feira, 10 de setembro de 2002

(só para não dizer que não publico nada. esse é repetido...)

Aniversário

Esta é uma obra de ficção. Um conto menor.

Chega o elevador no segundo andar. A porta se abre com barulho de criança gritando e correndo. Passa por mim duas tias conversando. E a voz da minha mãe de dentro da casa.

“Olha quem está aqui!” – diz uma tia que fez aniversário no dia seguinte.
“João, quanto tempo que não te vejo, menino” – a outra tia, já cambaleando com tanta cerveja na cabeça.

Não visitava a casa da minha mãe fazia quase um ano. Tempo que foi suficiente para apagar todos os motivos que me fizeram sair de casa. Diria que não fui expulso. Fui apenas convidado a me retirar. E tive que me virar de uma hora para a outra.

Tudo por causa de um pequeno cigarro que encontraram dentro de uma caixa minha. A empregada estava fazendo a faxina no meu quarto e derrubou, sem querer, a caixa no chão, fazendo com que o cigarro ficasse a mostra.

No final do dia, minha mãe veio conversar comigo. Perguntou há quanto tempo eu consumia drogas. Respondi que desde que nasci. Lembrava do gosto do leite dela. E era uma merda.

Era turbinado pela quantidade de álcool que ela tomava. Ficava com o gosto um tanto quanto azedo. E eu tinha que tomar aquilo. Não podia nem chorar nem reclamar na época.

Depois ela disse que não iria sustentar vagabundo viciado. Tudo por causa de um mísero cigarro. Eu não tinha como contra argumentar. Resolvi empacotar minhas roupas e coisas e ir para a casa de um amigo meu que morava sozinho.

Havia um tempo que eu já queria ficar sozinho. Fazer o que eu queria na hora que eu queria. Fumar, beber, sair, tudo na hora que eu quisesse. E não depender de mesada ou ter que dar satisfação. Por outro lado, nunca mais tive uma camisa passada. E já até esqueci como é uma.

Procurei apartamento e emprego. Fui morar onde sempre quis. Num quitinete. Mas era só meu. Não precisava dividir com mais ninguém. Arranjei um emprego com outro amigo meu num agência de turismo. O dinheiro é pouco, mas certo.

Fui fazer a visita para a casa da minha mãe porque já tinha perdoado o que ela tinha feito. Tínhamos conversado muito por telefone nesse período separado. Ela disse que era a única forma de conseguir que eu crescesse. Que não se importou muito com o cigarro em si. Mas queria que eu tivesse responsabilidade. Coisa que eu não aparentava.

Me ligou na terça. Falou que comprou um livro que eu queria ler e não conseguia achar. Pediu para ir buscar na casa dela na quinta.

Achei muito estranho ela fazer esse convite. Nesse espaço de tempo, ela nunca tinha feito isso. Ela me contou, também, que estava muito doente. Vomitava demais, não estava conseguindo comer e estava perdendo toda o cabelo.

Peguei um calendário. Desliguei o telefone e percebi que o aniversário dela era na quinta. Ela queria que eu tivesse lá. Ela devia estar fazendo alguma festa e queria que eu tivesse lá.

Minha mãe sempre foi muito família. Gosta de reunir todas as pessoas que não sabem os nomes dos próprios filhos mas, por uma coincidência do destino, nasceram na mesma família.

Ela acredita que os laços familiares são os mais importantes e inquebráveis que existem. Por mais louco que isso possa parecer, eu nunca discuti com ela sobre isso. Ou tentei, uma única vez, apresentar meus pontos de vista e desisti quando ela disse que tinha fé na família. Não existe nada mais irracional que a fé.

Entrei no apartamento da minha mãe pela porta da sala. Ambas as portas estavam abertas. Mas queria lembrar o caminho que sempre fazia. A sala estava lotada. Algumas tias, alguns primos, alguns cunhados e várias crianças correndo de um lado para o outro gritando. Tinha que tomar cuidado para não tropeçar em uma.

Quando você está com apenas uma criança, ela é uma graça. Quando são duas, são suportáveis. Mais do que isso é um bando. Fico com vontade de dar um cascudo em cada uma delas a cada briga ou choro.

Comecei a cumprimentar todas as pessoas que conhecia. Fui o mais simpático de todos. Minha mãe dizia que eu era a pessoa mais fria que ela conhecia, só porque detestava ser gentil com quem desconhecidos.

Fui para a cozinha, as tias que estavam no corredor quando cheguei estavam lá. Mais Leonor, uma outra amiga da minha mãe que é a maior alcoólatra que eu conhecia.

Uma vez perguntei para a minha mãe porque ela era amiga dessa mulher. Ela me respondeu que ser amiga de uma pessoa comum era fácil. Agora, quase ninguém se importa com quem realmente precisa de carinho e conforto.

Fui para o quarto que um dia já foi meu e minha irmã mais nova, Tatiana, estava nele. Ela e todas as suas amigas adolescentes. Minha irmã mais nova é mais velha do que eu, tem 28 anos. Mas parece, como todas as amigas dela, uma adolescente no pior significado da palavra. Boba e ingênua.

O quarto estava lotado. Coloquei minha bolsa no canto e saí com a caixa do presente da minha mãe na mão. Tatiana ainda teve tempo para dizer que estava com saudade. Que eu nunca tinha ido visitá-la depois da minha saída de casa. Eu perguntei se ela sabia onde eu morava. Ela ficou em silêncio.

No corredor encontrei minha mãe. Ela estava com um chapéu pequeno para não mostrar a careca. Estava muito magra. Com uma cabeça desproporcional. Vestida elegantíssima, como eu nunca tinha visto antes.

“Oi” – disse ela. Dei os três beijos formais. E um abraço informal.
“Você está magro”- ela disse.
“Você também” – Nos encaminhamos para a sala.
“Já cumprimentou a Tia Francisca”
Olhei para ela para que ela percebesse que isso era inútil comigo. Mas era o aniversário dela e não queria que ela ficasse triste.
“Já” – respondi apenas. Estiquei meu braço e entreguei o pequeno pacote para ela. “Parabéns”.

Nessa hora minha irmã, com suas amigas tinham saído do quarto em direção à sala. Minhas tias da cozinha também tinham ido para a sala, fazendo com que esta ficasse lotada. E todo mundo estava olhando para o presente que eu dei para a minha mãe.

Ela abriu o pacote azul que tinha uma fita vermelho sangue. Levantou a tampa e tirou um cigarro tão bem apertado que parecia industrializado. Olhou mais de perto para confirmar o que era.

Silêncio sepulcral na sala. No fundo tocava “Como nossos pais” cantada pela Elis Regina. “É para você se alimentar melhor” – disse. “Você fuma isso e depois que a onda passar, vai ter uma fome enorme.”

O silêncio continuava. Os segundos pareciam horas. E quebrou-se com minha mãe, olhando para mim, com lágrimas nos olhos, dizendo “obrigado”.

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