sexta-feira, 20 de dezembro de 2002

A arte de escrever crônicas deve-se muito da capacidade do cronista em conseguir tergiversar de maneira altamente agradável sobre a falta de assunto, muitas vezes visto com menos importância do que os ditos grandes assuntos da humanidade, como política, artes, relações interpessoais e, principalmente, etc.

Muitas vezes, o cronista, esse artista que consegue tirar água de pedra, sempre renegado a um segundo plano, faz um junção de um assunto dito popular para elucidar uma grande questão. Outras vezes não. Apenas esvazia a cabeça de uma pauta que martela durante semanas nos neurônios. Nessas horas, nós leitores, somos brindados com uma excepcional capacidade dos cronistas em narrar o nada, ou apenas o nada cotidiano de maneira a completar o espaço vazio. Já até ouvi de um cronista renomado que a maior musa dele era o papel em branco.

E lemos crônicas belíssimas sobre nenhum assunto específico, ou sobre o branco, ou sobre a necessidade de escrever uma crônica. Muitos cronistas sofrem de um complexo de culpa enorme, quando não utilizam os recursos dos ditos grandes assuntos. Outros são especialistas em dialogar sobre o nosso dia-a-dia.

Essa mea culpa serve de introdução para um assunto que me acompanha há alguns meses já. Como a tecnologia influencia a nossa comunicação. Não me refiro agora a uma mudança de modos de viver, e de trocar informações à distância, por mais que isso comprovadamente aconteça. Mas de uma transformação da nossa linguagem mesmo, do nosso modo de falar ao entrar no elevador, ao nos relacionar no trabalho, ao conversar no bar.

É fato mais que batido que a língua é um organismo vivo muito parecido com aqueles polvos de filmes de terror antigo os quais se alimentam de todas as formas de comunicação que seus tentáculos podem alcançar. O próprio português é uma maneira mais aberta de falar o espanhol, quase um castelhano do Porto, que por sua vez já foi uma mudança do original latim. E são incontáveis as palavras que adaptamos e utilizamos provenientes de outras línguas. De cabeça lembro algumas: bidê, garagem, garçom, arroz, souvenir e mais uma porção que se começasse a listar, o texto ficaria só com a palavras soltas.

Mas a influência da tecnologia é uma situação nova. Por mais que o processo seja o mesmo, do englobamento de palavras de idiomas estrangeiras pelo português, há uma modificação de certos comportamentos e de, principalmente, de alguns ditados populares. (aqui começa o caráter de “texto sobre o nada” que foi alertado no início).

Quando alguém dizia “Vingança é um prato que se come pelas beiradas”, referia-se ao fato de que, quando uma comida qualquer é colocada dentro de uma recipiente qualquer, o seu centro fica muito mais quente do que as beiradas. Logo, quem comia pelas beiradas é mais esperto, pois não queima a boca, e tem mais paciência por não pegar o centro (objetivo de todo mundo que se alimenta, logo todo mundo mesmo) no início. Para fechar o raciocínio, quem quisesse ser vingativo devia ter paciência e ser esperto, de outra forma se daria mal. Com o forno de microondas tudo se modificou.

Ao sair de dentro do forninho, o recipiente com a comida se torna difícil e carregar, tamanha é a quentura do prato. E para contrariar o ditado que aprendemos desde o nascimento, o centro é o lugar menos quente de todo o vasilhame. Se você não quiser queimar a boca, comece pelo centro, que bem provavelmente estará até um pouco gelado. O aconselhável é, na medida do possível para não transformar seu almoço ou janta num samba do crioulo doido, misturar as partes, meio e beiradas, para que assim, os seus calores se equivalham e você não queima a boca nem fique irritado com uma parte da sopa ainda gelada.

Ou seja, a “Vingança” não é mais um prato que se come pelas beiradas. Até pode ser “um prato que se come frio”, e isso é inegável, mas não pelas beiradas. Apenas nos casos que a comida é feita no fogão tradicional. Como quase ninguém tem mais tempo de fazer a comida da maneira “tradicional”, percebemos uma modificação da nossa linguagem através do uso da tecnologia.

Isso sem falar em termos que se não fosse a tecnologia, nós nunca iríamos saber que existem, download, atachar, deletar, (essas duas já aportuguesadas). E sobre a atual onda, ou moda, principalmente no mundo de “negócios” de usar o inglês para tudo. Nada contra, sou um grande usurpador da língua inglesa também, mas “downsizing”, “fyk” e “regards” para mim, já é demais. Nunca pensei em um limite para isso, mas que dever haver, em algum lugar que não sei onde é, deve haver.

Sério agora. Como todas as modas, essa tem as suas vantagens e suas desvantagens. A maior vantagem, a meu ver de preguiçoso, é precisar apenas aprender uma língua para poder se comunicar com todo o mundo. Como se tivessem “inventado” o esperanto.

As partes ruins mais visíveis são, sem ordem, por favor, que o inglês é a língua dos americanos e eles não precisavam de mais essa para se sentirem os donos do mundo. Já bastava bajularmos todos os dias quando falamos “internet”, “e-mail”, “inbox” para alimentarmos a prepotência dele. E a exclusão que a língua única implica. Quem não souber o inglês fará parte de um grupo a parte. (sem contar com a morte prematura das outras línguas. Ou a transformação em apenas dialetos sem a menor importância).

Mas, para demonstrar algum otimismo, e conhecimento das cousas que acontecem ao redor no mundo, me lembro de uma clássica cena do “blade runner”, do Ridlley Scott. Quando o Harrison Ford entra na loja do chinês que se comunica numa mistura de inglês, chinês e espanhol. Se o inglês influencia todas as outras línguas por ser a representante oficial do império, outras línguas infectam já, como vírus, o interior da célula-mater.

É visível que a intensa imigração dos chicanos para os eua constituiu uma comunidade completamente à parte daquela vista como perfeita pelos integrantes da wasp americana. Existem grupos inteiros de pessoas que já se comunicam em dialetos diferentes do inglês, numa corruptela do espanhol misturado à ginga dos negros do harlem (mesmo os que ficam há milhares de quilômetros do bairro novaiorquino).

E isso não acontece somente nos eua, mas em todo país que cresceu, teve colônias e agora quer fechar as portas para a onda de imigrantes dos países colonizados que tentam, ao voltar para o país-sede, um pedaço do quinhão a que, acham, tem direito. Como se fosse uma resposta irônica do destino. Como se dissessem, já que não posso competir com vocês, vou morar na casa de vocês para mostrar todos os dias o meu rosto diferente. Todas as vezes, quando vocês passarem por mim nas ruas, que eu estiver pedindo esmolas, limpando vidros, ou apenas vendendo quinquilharias nas esquinas, não se esqueçam que foram vocês que pediram isso.

Mas por que eu escrevia isso?

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