quinta-feira, 12 de dezembro de 2002

O homem sem olfato

por Ronaldo Pelli







SEQÜÊNCIA UM – CENA UM – FARMÁCIA – INT/DIA



ANDRÉ entra numa farmácia com uma receita na mão. Um pouco depois dele, entra uma loira muito atraente. Há dois balconistas: um velho e barrigudo e um magricelo e alto chamado apenas de ZÉ na farmácia. André e a Loura chegam juntos no balcão, e André estica o braço para que um dos balconistas a pegasse. Os dois balconistas ignoram André e vão atender a loura. André observa a cena com uma expressão distante do que acontecia.



Balconista mais velho (para a loura) – Pois não?



André balança a receita.



Balconista mais velho (para o ZÉ) – Zé, atende o moço...



Zé (para o outro balconista) – Por que eu?



Balconista (para o Zé) – Porque EU vou atender a moça. (para a loura) Pois não?



Moça Loura – Vocês têm Ponstan?



Zé (para André, de maneira ríspida) – o que é?



André entrega o papel para o balconista que o atendeu.



Zé (olha desdenhando para o papel) – Tu tá com algum problema no nariz?



Zé (fala baixo por vergonha) – o médico disse que pode melhorar com os remédios... é horrível não sentir mais os cheiros...



No mesmo momento, a Loura sai do balcão agradecendo.



Loura – Obrigada.



Balconista mais velho (fala olhando para ela se afastando) – de nada, volte sempre. (Quando ela está longe) Nossa, que gostosa, você viu Zé?



Zé (para o balconista apontando para André) – e que cheiro. Esse aqui é que não sentiu nada...





SEQÜÊNCIA DOIS - CENA UM - QUARTO DE JOANA - INT/DIA



JOANA, vestida apenas com calcinha e sutiã e a toalha na cabeça, coloca um vestido preto curto na frente do corpo e se olha no espelho, enquanto segura um outro azul com a outra mão. Podemos ver no quarto de Joana algumas fotos antigas dela com André, dela com a família, de uma viagem que fizera para fora do país. Em cima da cama jogada, encontram-se algumas revistas de moda com dicas de cuidados com o corpo. Ela troca de vestido, olha para o preto e depois para o azul, olha para a cama, onde há um par de sandálias marrons, escolhe o azul.





SEQÜÊNCIA DOIS - CENA DOIS - QUARTO DE JOANA - INTERIOR / DIA



Joana dá os últimos retoques na maquiagem, com o rímel nos cílios. Acaba de passar, guarda o pincel e pega uma caixa de dentro do armário. Tira o perfume de dentro e pulveriza. Dá um sorriso para o espelho, limpa um dente sujo de batom e sai do quarto.





SEQÜÊNCIA DOIS - CENA TRÊS - SALA DE JOANA - INTERIOR / DIA



Joana atravessa a sala e antes de chegar à porta, a maçaneta vira e a porta se abre. MÁRCIA vestida com roupa de ginástica chega em casa. Márcia abre a porta, observa Joana e antes de fechar a porta, fala:



Márcia - Nossa! Aonde nós vamos hoje?



Joana (simpática, faz pose) - Estou bonita?



Márcia - Linda e (fecha os olhos) cheirosíssima. Que perfume é esse?



Joana - O André que me deu. Márcia,tenho que ir. Não me espere para jantar, vou encontrar o André num restaurante perto da casa dele. Nós vamos conversar.



Márcia - Conversar? Sei... Sabia que vocês acabariam voltando. Vocês foram feitos um para o outro.



Joana - Tomara. Tenho mesmo que ir. Depois a gente conversa melhor.



Márcia - Depois você me conta tudo o que aconteceu, ta?



Joana - Pode deixar que eu conto. O elevador chegou. Tchau, Márcia.



Joana sai de casa com pressa para pegar o elevador.



Márcia - Tchau, Joana.





SEQÜÊNCIA TRÊS – CENA UM – RUA PERTO DO RESTAURANTE – EXT/NOITE



Anoitece, André anda na rua, com as mãos nos bolsos, observando todo o movimento, e displicente com o chão que pisa. Observa na esquina da rua um quiosque que vende flores e artigos botânicos. André caminha um pouco mais devagar ao se aproximar do quiosque. Em frente ao quiosque, há cocô de cachorro. André, distraído, não repara. Pára de andar, pisando bem em cima do cocô de cachorro. Pega uma flor de um vermelho forte, esfrega os dedos nas pétalas e depois aproxima a mão do nariz. Decepcionado, balança a cabeça, olha para o relógio e arregala os olhos. Sai pela rua apressadamente.



SEQÜÊNCIA QUATRO - CENA UM - SALÃO DO RESTAURANTE - INT/NOITE



André entra correndo no restaurante. O restaurante não é caro, mas preza pelos serviços de qualidade. Joana tem uma cestinha com algum pão e duas garrafas de água vazias na sua frente, mas abre um sorriso quando o vê. Um garçom vem oferecer uma mesa para ele, mas ele dispensa e aponta para Joana, ela se encosta à cadeira com um sorriso. Ele se aproxima da mesa dela, abaixa, dá um beijo no seu rosto demorado.



André (fala em voz baixa por causa do atraso)- Oi.



No instante em que André se senta, Joana funga uma, duas vezes, sente um cheiro estranho, mas ignora.



Joana (com um sorriso)- Oi.



Ele se senta na frente dela.



André - Desculpe o atraso...



Joana (ainda com o sorriso) - Não faz mal...



André (se desculpando)- É que tive que passar no médico antes de vir para cá e me atrapalhei todo com isso...



Joana - Médico? O que houve?



André (envergonhado)- Nada não. Fui apenas pegar uns resultados de exame.



Joana - Mas, o que ele falou?



André - Nada, nada importante...



Garçom (pigarreia e interrompe) - Desculpe, mas você gostaria de beber algo?



André (olha para o garçom) - Um chope, por favor. (olha para Joana) Você quer também um chope?



Joana - Sim, claro.



André (olha para o garçom) - então, me vê dois chopes, por favor. (André se vira para Joana, e como se lembrasse, volta-se para o garçom) Sem colarinho, por favor.



Garçom - sim, senhor. Pode deixar.



Joana - Mas fala o que você tava falando.



André - O que eu tava falando?



Joana - Sobre o médico e tal...



André (envergonhado) - Ah, sim. Sei. Ah, não foi nada demais. Fiz uns exames e não deu nada importante. Só que eu...



No mesmo instante, Joana funga e sente novamente o cheiro ruim novamente. O garçom chega com os chopes e coloca na mesa.



André - Um brinde.



Joana - Um brinde.



André - A nós. A uma segunda chance.





SEQÜÊNCIA QUATRO - CENA DOIS - SALÃO DO RESTAURANTE - INT/NOITE



Na mesa onde estão sentados, há algumas tulipas vazias. André está com a mão levantada pedindo mais dois chopes para o garçom.



Joana - Eu vou ao banheiro.



André - Você se importa de eu pedir alguma coisa para beliscar?



Joana (sorri) - Claro que não.



Joana caminha para o banheiro e André a acompanha. O garçom chega com mais duas tulipas e coloca em cima da mesa. Funga duas vezes e disfarça. André está com o cardápio aberto.



André - Esse repolho recheado vem com uma porção caprichada?



Garçom - Sim, senhor.



André - Dá para nós dois?



Garçom - Vem num prato grande assim (e faz com as mãos o tamanho aproximado).



André - Então traz para a gente.



Garçom - Sim, senhor.





SEQÜÊNCIA QUATRO - CENA TRÊS - BANHEIRO DO RESTAURANTE - INT/NOITE



Joana se olha no espelho. Molha um pouco o rosto e seca com uma toalha de papel. Pega o batom para retocar. Cheira os próprios pulsos, uma, duas vezes.



Joana - E o puto nem reparou.



Sai do banheiro.



SEQÜÊNCIA QUATRO - CENA QUATRO - SALÃO DO RESTAURANTE - INTERIOR / NOITE



Joana se senta. André está com um prato de repolho com péssimo aspecto na sua frente.



André - Estava esperando você voltar para comer.



Ele corta um pedaço e coloca na boca. Começa a mastigar com vontade, depois diminui a velocidade.



Joana (com ar de repugnância) - Você pediu só repolho?



André com o repolho azedo na boca, não pode cuspir de volta e não consegue engolir. Joana fica olhando para ele esperando uma resposta. Ele pega a tulipa e vira um bom gole para limpar a boca.

Coloca o copo quase vazio de volta na mesa e com vergonha de ter comido o repolho azedo, fala:



André - Vamos pedir outra coisa.



Joana (pega o cardápio) - Olha, a batata-frita daqui vem com alho frito.



André percebe que o repolho não fez muito bem para ele. Coloca a mão esquerda no estômago e levanta a direita para chamar o garçom.



André - Você pode me ver essa (não se segura e solta um arroto, abafado pela mão direita que estava próxima, e olha para Joana), desculpa. Você pode me ver essa batata-frita com alho.



Joana sente o cheiro de azedo do arroto de André misturado com o cheiro ruim que já estava e se encosta à cadeira, com uma cara de nojo. Pega a bolsa e saca de dentro duas balas. Abre uma e coloca na boca.



Joana - Quer?



André - Não, obrigado.



Joana - Quer sim, pode querer.



André - Não, eu não gosto de balas.



Joana - Toma uma balinha...



Ela se levanta e tenta colocar a bala na boca dele. O pulso dela fica perto do nariz dele. Ele vira o rosto. Ela se senta. Fica um silêncio entre os dois. Ambos olhando para lado opostos no restaurante.



Joana - Poxa, você nem falou do perfume que eu estou usando...



André - Perfume?



Joana - É.



André - Sim. É que...



Joana (interrompe) - O perfume que você me deu.



André - Exatamente. Eu não queria dizer que era o perfume que eu tinha te dado. Porque, porque, porque poderia parecer que eu estava me gabando por saber qual o perfume que você está usando... Mas você está cheirosíssima (ele se levanta e cheira o pescoço dela), combina muito com você...



Joana - Você sentiu esse cheiro?



André - claro, o seu perfume. Ótimo perfume. É forte como você...



Joana - Não, o cheiro ruim.



André - Cheiro ruim?



Joana - Isso, o cheiro ruim. Você não sentiu não?



André - Eu só senti o seu cheiro que é maravilhoso...



Joana - Foi quando você chegou perto de mim.



André - Quando eu cheguei perto de você?



Joana - Vem cá. (ela se levanta para cheirar o pescoço dele, depois se senta em seguida) Não, o cheiro não vem de você, mas é mais forte quando você está mais próximo.



André (com um sorriso meio nervoso) - Eu tomei banho de tarde, antes de ir ao médico...



Joana - Que estranho, parece co...



O garçom chega com a batata e coloca na mesa e ela não completa a frase. Ele pega um palito de batata cheio de alho e coloca na boca. Logo que o alho chega no estômago, se sente mal e vai para o banheiro correndo. Joana começa a comer a batata e observa André correndo para o banheiro.





SEQÜÊNCIA QUATRO - CENA QUATRO - BANHEIRO DO RESTAURANTE - INT/NOITE



André entra no banheiro direto para o sanitário, que estava ocupado. Olha para o outro lado, tem o mictório de alumínio, cheio de gelo e limão. Abaixa a cabeça para tentar vomitar e nada. A porta do sanitário se abre e sai um senhor que olha para o André de cabeça baixa no mictório. Ele se levanta e finge estar fechando a braguilha. Quando o homem sai do banheiro, André entra no sanitário.

Ajoelha-se no chão e olha para a água do sanitário. Não consegue vomitar. Tenta aspirar o ar dali para se enjoar ainda mais, mas, obviamente, não sente cheiro nenhum. Fica um tempo parado, mas se levanta e sai do sanitário sem conseguir vomitar. Vai para a pia, abre a água, fica se olhando no espelho e sente a barriga fazer barulho. Não passa bem. Acaba de lavar as mãos, pega um papel para secar e percebe que a barriga faz mais barulho. Se concentra e solta alguns gases. Sai do banheiro em seguida.



SEQÜÊNCIA QUATRO - CENA QUATRO - SALÃO DO RESTAURANTE - INTERIOR / NOITE



Ele passa por ela, se abaixa e dá um beijo na sua bochecha. Ela sente um cheiro ruim na hora, tenta se desvencilhar dele.



Joana - Nossa! Que cheiro ruim é esse?



Ele fica em pé, ao lado dela, meio surpreso.



Joana - Não é possível que você tenha feito isso na minha frente?



André - Feito o quê?



Joana (indignada) - Esse fedor! Você tem soltado desde que chegamos aqui, não é?



André (se sentando) - Não. Foi só agora que...



Joana - Desde que você chegou, eu senti esse cheiro horrível...



André - Mas, foi só...



Joana - Você realmente não muda. E, eu que pensei (como se estivesse conversando consigo mesma) “Joana, você tem que dar uma chance para ele...”.



André (em tom baixo) - Foi a comida...



Joana (já sem escutar o que ele falava) - Mas você não muda, né André? (se levanta) Você continua o mesmo. Logo hoje, logo hoje, você tinha que fazer isso?



André - Mas, mas...



Joana se encaminha para a porta, André se levanta e a acompanha com os olhos apenas.



André (grita de onde estava para a porta) - Ah, vai dizer então que você nunca peidou?



Joana (parada na porta de saída se vira e responde meio assustada)-Eu posso até ter (baixa o tom de voz, olha rapidamente para um lado e para o outro) peidado. (volta o tom normal) Mas, eu sempre fiz isso num lugar mais, mais, mais (procura a palavra) privado.



Joana sai do restaurante batendo a porta, André se senta na cadeira. Algumas pessoas nas mesas próximas olham para ele. Ele abaixa um pouco na cadeira e pede a conta ao garçom que também olhava para ele. Não demora muito e o garçom traz a conta para ele.



André - É... Posso te fazer uma pergunta?



Garçom - Sim, claro.



André - Eu estou fedendo mesmo?



O garçom se aproxima um pouco dele.



Garçom - Sim, senhor.



André deixa algumas notas em cima da mesa.



André (bate no ombro do garçom de saída) - obrigado, hein.



E sai do restaurante, escutando algumas risadas das pessoas do restaurante.



Na porta, do lado de fora, ele olha para a sola de sapato e vê que está suja. Começa a andar e pensa em voz alta.



André - Eu tenho que escolher melhor onde piso.

Nenhum comentário: