segunda-feira, 17 de fevereiro de 2003

perfis do rio:

A mulata

Para encurtar a história, podemos dizer que, quando Fred desceu naquela cidade tão pequena, ele só pensava em passar alguns dias de férias. Fazia um dia de sol forte, um dia quente que pesava, quando nem os olhos se atrevem a ficar abertos e ele entrou no modesto hotel quase de estrada para fazer o check in quando ficou embasbacado com a atendente. Perguntou pelo nome dela, “Sol”, ela respondeu. Ele não resistiu e fez algum tipo de piada de péssimo gosto envolvendo o nome da mulata nova de ancas largas. Ela, talvez por generosidade, talvez por humildade, nunca vai se saber ao certo, deu um riso pequeno, que ele entendeu como um retorno claro da parte dele. Logo estava íntimo da menina e falava-lhe para retornar com ele para a cidade grande. Porque lá que era vida, ela, uma moça linda como o Sol, sempre repetia, deveria viver no Rio de Janeiro. Ele arranjaria emprego para ela. Sol sorria e ele se empolgava cada vez mais.

A menina se encheu de esperança e foi um dia de noite, depois do expediente falar com a mãe sobre a vontade que ela tinha de ir com aquele moço, baixinho, gordinho, mas muito boa gente, para a cidade grande, quando a mãe, uma morena ainda maior que Sol, gritou de volta que filha dela viveria e morreria por perto, nada de ir morar no Rio de Janeiro, ainda mais com um homem que elas não conheciam, que tinha chegado outro dia.

Solange chorou por dias seguidos, atendia o público de rosto inchado e com falta de atenção, mas, obviamente, após mais alguns dias de insistência de Fred, fugiu com ele para a cidade grande, para ser feliz, para ficar famosa, como ele dizia.

Sol mal sabia que Dona Isaura, sua mãe, havia também tentado a vida na cidade grande quando era mocinha, assim, mais ou menos da idade de Sol e tinha voltado menos de dois anos depois, grávida dela. Como um enredo de uma péssima novela, a história se repetia com o intuito único, pensava Dona Isaura, de destruir a única família que ela tinha.

Não adiantava Dona Isaura esconjurá-la, desertá-la ou até amaldiçoá-la, Sol dizia que já tinha 18 anos e que tinha que viver sua vida com as próprias pernas. E foi mais ou menos isso que Dona Isaura fez. Mas não é essa a parte da história importante.

O que vale é que quando chegaram ao Rio, Fred levou Sol para o seu quarto e sala de Copacabana e disse para ela que era ali que eles morariam. Sol achou apertado, desconfortável, pequeno, mas não reclamou, estava tão extasiada com tantas novidades da cidade grande, e tanta beleza que dava para ver só de andar na praia, ou de pegar o bonde até o centro da cidade, que ela aceitaria qualquer coisa.

Quando chegou a noite, Fred perguntou para Sol se ela gostava de dançar. A menina, como era de costume, abriu um sorriso e afirmou que adorava, pensando que os dois sairiam para se divertir. O homem, sem a peruca que usava normalmente pela rua, sentou-se ao seu lado e colocou a mão no joelho dela. Sol fechou as pernas, mas não se moveu além disso. Fred começou a mexer o bigode, que se confundia com os pêlos que saiam do seu nariz, por perto do pescoço cor de cobre da menina, “Eu posso te arranjar um trabalho aqui”, Sol podia sentir o cheiro da colônia barata que ele usara misturada com nicotina, “Mas você tem que gostar de dançar”. A menina olhava para frente, estática, olhos arregalados, “Dança para mim”, o bigode dele quase encostando à orelha delicada da menina, “Não quero Seu Fred”, ela respondeu e se afastou um pouco do homem, sentando em cima do travesseiro que dormiria, ele se ajoelhou na frente dela, agarrou os joelhos da moça e ficou de frente para ela, “Nós vamos hoje na discoteca, vou te apresentar para o homem que faz a seleção das dançarinas, não quero que você me desaponte, hein?”, Fred estava com o dedo empunhado no rosto da menina, ela, com os olhos para baixo, apenas assentiu com a cabeça.

Havia uma fila enorme na calçada, basicamente formada por gringos que quebraram o pescoço na hora que Sol passou. Eles mais se pareciam com tubarões, para usar uma imagem bem batida, mas bastante funcional, a procura da comida nova. Fred, todo cheio, se emplumou ao lado dela. E ela tentava se esconder.

Entraram por uma porta lateral, reservada, Sol soube depois, aos funcionários da boate. De dentro podia-se ouvir a batucada da bateria de uma escola de samba, e ela não pôde conter o sorriso, “Está vendo o que o Fred faz para você, meu Sol”, ele falou ao reparar a satisfação dela, ela apenas abaixou a cabeça na tentativa de disfarçar o sorriso.

Logo Fred sumiu. Disse para ela aguardar num canto de um corredor e desapareceu. Sol ficou ali, encostada a parede, quando uma das portas abriu-se repentinamente e entraram várias mulatas de corpos esculturais, todas vestidas com fantasias e adereços carnavalescos. Entraram numa espécie de fila indiana, se é que se pode andar numa fila indiana fantasiada.

“Olha uma novata”, disse uma, “Bem gostosinha”, Sol ouviu do outro lado, “Será que agüenta o caldo”, não sabia ao certo quem dizia o que, “Mas olha esse bracinho, é muito magrinha”, as mulheres a rodeavam e ela não sabia o que acontecia, “É melhor desistir menina, aqui só trabalha mulherão, não magricela”, “Mas que bundão”, “Quem será que a trouxe, hein?”, Sol virava-se à procura e perdia-se, os olhos arregalados, o coração disparado, “Não se preocupe menina, a gente não morde”, “Não sempre”, e riram todas, “Deixa eu passar a mão nesse peitinho”, Sol deu um tapa na mão de uma e escutou um grito de dor, “Você tá maluca, menina, você acha que vai durar quanto tempo aqui, assim?”, alguém segurou a mão de Sol e outra deu um apertão no bico do peito dela. Sol gritou alto, mas parecia que o som da bateria abafava tudo. As mulheres soltaram Sol e ela se abaixou cobrindo os seios e sentiu uma escarrada nas costas, e uma segunda, e ia tomar a terceira quando a porta abriu-se e ela percebeu a presença de Fred no ambiente, “Ei, ei, ei, o que vocês estão fazendo aqui, com a menina?”, as mulheres se afastaram, “Nada não Fredinho, nada não”, e outra lançou, “Essa é a sua nova presa”, e todas riram, “Cuidado menina, é mais fácil lidar conosco que com o Fredinho ai”, e saíram. Fred abaixou-se, e levantou Sol que chorava copiosamente e repetia como num mantra, “Quero voltar para casa”. “Menina, acalme-se”, ele respondeu certa hora, “Se você quiser fazer sucesso aqui...”, e ela interrompeu chorando, “Não, não quero mais, quero voltar para casa”, “Ei, peraí, você veio daquele fim-de-mundo para não fazer nada? Eu te trouxe para você ser um sucesso”, e segurou no rosto dela para falar com firmeza, “Menina, você vai ficar e vai dançar naquele palco ali”.

Uma hora depois, Sol estava de biquíni, meia-calça e vestia a fantasia para dançar. “Querida, você sabe sambar?”, perguntou um veado que cuidava das meninas, ela balançou a cabeça meio sem jeito, sem querer admitir que não tinha a menor idéia de como era dançar, e fez com o que o Alvinho, o nome do veado, entendesse perfeitamente a situação dela, “Então, querida, fique do lado do palco, nunca no meio. Nunca tente chamar a atenção para você, seja discreta”, a cada conselho, Sol concordava com a cabeça com Alvinho.

O show começa e todas as mulatas evoluem no minúsculo palco, vão para frente e para trás, todas com o sorriso mais sincero que conseguem produzir, com a real noção do papel a que cabiam, com todos olhares da platéia, composta quase na totalidade por homens e gringos, dançam, sambam e esperam, mas Sol ainda não sabia disso, que algum gringo tenha mais audácia, ou tenha bebido um pouco além da conta, e suba no palco para que elas dancem com ele, e depois suba outro e mais outro e daqui a pouco o palco está intransitável com todo mundo sambando e rebolando ao som da batucada da bateria ali do lado.

Sol até que se sente à vontade sambando em cima do palco. Deixa que a música mexa cada músculo da sua perna e coxa e quadril e cintura, e rebola tranqüilamente, como se estivesse em casa, sem ninguém presente, quando sobe o primeiro homem ela acha curioso, dá uma risada, mas pensa que é apenas uma quebra no protocolo, apesar de não suspeitar que exista uma expressão, muito menos essa, que exemplifique o que ela sente naquela hora. Mas, quando sobe o segundo e assim por diante, Sol tenta sair do palco por uma das laterais e é empurrada de volta para o palco por Alvinho que diz para ela ficar lá até o show acabar. Logo tem um gringo ruivo de bigode na sua frente que não sabe sambar, embora tente a todo o momento balançar e apertar os pequenos peitos da menina, ela bate na mão dele no início, mas não consegue coordenar direito, dentro do palquinho, sambar e desviar das apalpadas do ruivo. Assim que a bateria dá uma parada, ela corre na direção do camarim e atropela o Alvinho, que tenta em vão pará-la. Ela senta numa cadeira no camarim, apanha suas roupas e chora, chora muito tapando o rosto com o vestido que ela vestia ao chegar na boate.

Em casa, Fred fala, “Não vai acontecer de novo, eu prometo. De hoje em diante, você vai ser a estrela do show, apenas a estrela”. Ela acreditou no início. Mas logo percebeu que não sabia sambar o suficiente para ser o destaque do show. Seria para sempre a coadjuvante e aceitou sem esboçar motivação, rejeição ou qualquer outro traço de emotividade. Depois foi a vez de perguntar para Fred se os boatos que ela ouvia sobre as meninas, as mulheres da boate fazerem alguns tipos de programa com os gringos eram verdadeiros. Fred disse que eram, mas que ela, o Sol da vida dele, nunca precisaria fazer isso. E ela continuava indiferente a tudo, como se o que acontecesse, não fosse com ela diretamente, mas com alguém bem distante.

Já dormia com Fred há um bom tempo e depois aceitou fazer um programa com um lourão norueguês que ficou encantado com a menina. Não parou nunca mais. O relacionamento de Sol com o resto das mulheres foi ruim apenas no início. Quando elas perceberam que ela não tinha nenhuma pretensão além da sobrevivência única e simples até quando pudesse, a englobaram sem maiores dificuldades. Sol, para usar uma das expressões preferidas de Fred, perdeu logo o brilho. Tanto fazia para ela. Não chorava mais, nunca telefonou para a família, nunca mais voltou para visitar a cidade natal, não sentia mais nada. Vivia na mediocridade e parecia 24 horas por dias anestesiada. No palco, sorria mecanicamente. Na cama, fingia gozar com Fred, ou com os outros homens, quando eles pediam isso. Provavelmente nunca soube o que era realmente um orgasmo. No meado da década seguinte, algumas meninas da boate adoeceram de uma doença estranha, nova, que diziam ser um câncer gay. Sol incluída. Não demorou nem dois anos para que morresse. Hoje, ninguém mais lembra dela. Ela se transformou em paisagem apenas.

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