quinta-feira, 24 de abril de 2003

hearts of darkness

Tanto o original “Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, quanto sua adaptação para as telas, “Apocalipse Now”, de Francis Ford Coppola, tratam do mesmo assunto: o comportamento de seres ditos civilizados ao entrar em contato com o mundo dos “selvagens”. Ou seja, a insanidade.

No caso do original literário, Willard é um comerciante inglês que deve ir para o interior da África buscar o traficante de marfim rebelde e insano Curtis. No filme, o Willard, de Martin Sheen, é um militar que deve buscar o coronel Kurts que enlouqueceu no meio do Vietnam. As duas obras narram a saga do herói ante o horror do desconhecido. E o fazem impecavelmente.

“Hearts of darkness” nasceu fruto direto do filme, meio que por acaso. Coppola pediu para sua mulher para fazer algumas imagens para a família em particular. Eleanor Coppola até admite que achava que o único intuito do marido era mantê-la ocupada durante os vários dias de filmagem que se seguir. O subtítulo do doc, porém, é uma amostra de como foram as filmagens: “O Apocalipse de um diretor”.

O filme diz logo de cara que a idéia de rodar uma adaptação do livro de Conrad surgiu antes para Orson Welles, no que seria sua primeira incursão como cineasta. Só que por motivos econômicos, a idéia foi engavetada. E ganhamos, assim, “Cidadão Kane”.

O primeiro problema enfrentado por Coppola foi convencer os estúdios de que um filme sobre o Vietnam seria uma boa. A guerra ainda era muito recente (o filme foi terminado em 1979 e os EUA tinham acabado de se retirar do Vietnam) e o público americano talvez não aceitasse um filme mostrando as desgraceiras dela. O diretor teve que usar todo o seu poder de barganha, conseguido através dos dois “Chefões”. Demorou, foi difícil para ele, teve que se comprometer com bilheteria, com retorno, com tornar o produto final mais palatável, mas conseguiu.

Escolheram as Filipinas para servir de locação. Entretanto, o país estava em plena guerra civil, tornando os dias de filmagens com helicópteros quase exercícios de sobrevivência. Reza a lenda que no dia de filmagem da famosa seqüência das Cavalgadas das Valquírias, guerrilheiros inimigos estavam a poucos quilômetros dali e só não bombardearam a locação por algum tipo de milagre. Fora que para usar os helicópteros, Coppola teve que pagar uma quantia absurda para o presidente-ditador das Filipinas da época.

O casting estava fechado desde o início das produções. Seria com Robert Duvall, Dennis Hopper, Marlon Brando e Harvey Keitel, no papel de Willard (fora ainda o novato Harrison Ford e o moleque de catorze anos Lawrence Fichburne). Porém, poucos dias antes de começarem a rodar, Keitel alega outros compromissos e desiste do projeto. Marlon Brando muda de idéia também, e pede um aumento astronômico no seu cachê já abusivo.

Coppola resolve o primeiro problema com sorte. Encontra Martin Sheen no aeroporto e o convida para fazer o papel, que aceita sem problemas. Com Brando o jeito foi estourar mais uma vez o orçamento inicial.

Apesar de levar a família para as filmagens (podemos ver todos os filhos dele, entre os quais os conhecidos Roman, com 10 anos na época e Sophia com quatro), o diretor está cada vez mais envolvido com o projeto e cada vez mais estressado. Filma-se de manhã, de tarde, de noite, de madrugada. Não param, varam horas na tentativa de conseguir a melhor cena. O “filmmaker” admite certas horas, nas conversas particulares para a mulher, gravadas sem que ele soubesse, que não tinha certeza de onde estava indo com o filme, de onde iria parar.

Na lendária seqüência inicial, onde vemos Willard no seu quarto de hotel barato, completamente bêbado, tocando “this is the end / my only friend the end”, a idéia original não era aquela. Martin Sheen estava absolutamente alcoolizado e mal conseguia ficar em pé, mesmo. Ele realmente quebra o espelho com mão e aquele sangue que suja seu rosto é de verdade. Sheen estava tão imerso no seu personagem que certa hora, ao perguntar para o diretor como era Willard em determinada cena, Coppola responde que era ele, Martin Sheen. O protagonista, que vivia bêbado, fumava três maços de cigarro por dia, não agüenta a pressão e tem um ataque cardíaco no meio do set. O filme pára pela segunda vez. (A primeira tinha sido ocasionada por uma tempestade tropical).

Voltam para o set depois de cinco semanas, para o ritmo anterior. Os atores secundários depõem admitindo que consumiam maconha para relaxar e anfetaminas para segurar o pique. Álcool, mais ainda.

Chega a parte final, onde Willard e Kurts se encontram. Já estão há mais de duzentos dias no set. Coppola diz claramente que está perdido, que realmente não sabe o que fazer. Entra em cena Dennis Hopper, o típico ator engraçadinho que quer motivação para todas as cenas. Coppola já não tem paciência para mais nada, quer acabar de filmar e ver no que vai dar. Os dois discutem muito e resolvem pouco. Quando, para piorar, chega Brando.

O antagonista não sabe qual é o seu personagem. Não tinha lido o livro, nem o roteiro. Não tem noção do que vai falar ou fazer. E recebe por dia de filmagem. Pressão por todos os lados em cima de Coppola, ele tem que terminar o filme, não pode estourar ainda mais o já explodido orçamento e ainda quer uma grande seqüência final.

Sua mulher sugere incorporar alguns elementos de um ritual dos filipinos nativos e ele adora a idéia. Aí nasce a cena da morte do boi. O diretor deixa Brando livre para criar em cima das falas de Kurts. Só que Brando demora mais de três semanas para entrar no clima da personagem Vivia brincando e fazendo piadas, para agravar o estado do diretor.

O diretor fala que a única coisa que importa é terminar o filme. Parece uma mistura de Curtis com Willard. O homem civilizado que entrou na selva. Já estava tirando dinheiro do próprio bolso para terminar, já era uma das mais demoradas produções e recebia diariamente críticas e piadinhas por parte da mídia especializada em relação às filmagens.

Somente dois anos e meio depois de terminar a fase do set ele consegue exibir o filme. E é consagrado mundialmente com prêmios dos mais importantes, como a Palma em Cannes e dois Oscars.

Com “Apocalipse Now”, Coppola terminou a fase dos grandes épicos dispendiosos para os estúdios. Nunca mais foi feito qualquer filme nessas proporções utilizando apenas objetos e cenas reais. O mundo já não era o mesmo depois dele, e a era da tecnologia havia chegado para mudar tudo.

Coppola nunca mais foi o mesmo também. Como se tivesse conseguido sobreviver da selvageria, mas mudado. Nunca mais produziu grandes produções nem nos brindou com obras-primas como essa. Talvez tenha ultrapassado o limite entre sua sanidade e o outro lado e o que viu não foi encorajador. Talvez para produzir outros filmes grandiosos como esse, deveria encarar uma viagem tão qual essa e ele não acha mais que valha a pena. Talvez não seja mesmo. Ele já faria da lista de melhores diretores de todos os tempos se só tivesse feito o “Apocalipse...”.

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