terça-feira, 22 de abril de 2003

woody allen - "rosa púrpura do cairo"

Quase toda obra, ou toda mesmo, do Woody Allen é permeada por alguns toques de nonsense. Em qualquer das fases criativas do diretor nova-iorquino, sempre aparece alguma cena surreal que não tem parentesco com a realidade. Porém essas imagens fantasiosas muitas vezes conseguem passar de maneira melhor a mensagem que ele quer.

Outro dado curioso em relação à obra do cineasta judeu é a associação com temas considerados difíceis e pesados, como o existencialismo ou a procura de sentido na vida. Mesmo que ele sempre venha a público, nas poucas oportunidades, defender sua condição de homem comum que adora beisebol e não perde um jogo dos Yankees.

E esse tipo de associação até pode ser facilmente explicada. Mesmo que ele não queira, seus filmes são obras bem acabadas de raciocínios simples, porém de uma originalidade ímpar sobre assuntos sempre, ou quase sempre, inusitados.

Retratar como é feito um filme não é novidade e vários cineastas de renome, e outros nem tanto, tentaram fazer isso. Sucessos e clássicos são fáceis de lembrar. Porém mostrar qual é a sensação que o cinema proporciona para o espectador é raro.

“A Rosa Púrpura do Cairo” fala exatamente sobre isso. Cecília (Mia Farrow) é a mulher oprimida pelo marido, sem esperança, desempregada que vive nos cinemas para ter algum tipo de ilusão e poder continuar a vida.

Os filmes funcionam como elementos entorpecentes para ela. Ela idealiza suas frustrações e anseios junto com a luz do projetor. Para ela, não existe nada melhor, mais feliz que a vida das personagens da telona.

Contudo, um dos personagens do filme que ela assiste pela quinta ou sexta vez, Tom (Bill Pullman), decide desvendar como é a vida ali fora do filme. Fica curioso por aquela menina que vem assistir em sessões seguidas as suas atuações e seus dramas e pula fora do filme. Típico do Woody Allen.

O motivo alegado é que é sensacional. Ele não quer mais ser guiado, quer decidir como será sua vida. Suas atitudes aqui fora continuam respeitando toda a estruturação desenhada pelos roteiristas, que ele confunde com deus, e desempenhada pelo ator que o interpretou. Assim, Tom é imprevisível, impulsivo e romântico até o último fio de cabelo.

Cecília e Tom se apaixonam, como era de se esperar. Ele é tudo o que ela quis na vida. Um homem perfeito, sem defeitos, sem problemas “e que tem o melhor beijo do mundo”, como ele próprio diz no filme.

O que é inesperado, e a cara de Woody Allen mais uma vez, é o encontro entre o ator que interpretou e a obra acabada. O ator, depois de perceber que Cecília é sua grande fã, também cai de amores por ela. E ela fica no impasse sobre com quem vai ficar. Com o limitado e perfeito, ou com o “de verdade”, como dizem a todo momento.

De lambuja, Allen nos proporciona algumas frases exemplares para martelar na cabeça após o fim do filme. Certo momento um coadjuvante, ao perceber que uma personagem havia fugido da projeção, diz que “quem está aqui fora quer entrar, e quem está lá dentro quer pular fora”. Podemos supor obviamente que o ser humano é um eterno descontente com sua situação, sempre tentando buscar algo diferente da sua realidade cotidiana.

Em outro momento, uma das personagens do filme que está sendo projetado diz que bastava ter a consciência que a realidade é um conceito para lá de relativo. Todos deveriam pensar que eles viviam na realidade e todos os de cá fora e que viviam na ficção. E depois, quem poderá negar isso?

Claro que esses conceitos não são o mote principal do filme que foca na idéia da projeção. Mas, Woody Allen preenche os espaços coadjuvantes de seu filme com idéias muito mais interessantes do que a maioria dos filmes que vemos por ai.

Talvez essa seja a sua receita para a produção. Misturar um pouco de nonsense com um tema inusitado, retratado de maneira longe da óbvia, com espaço para sacadas secundárias interessantíssimas. Claro que, fugindo da unanimidade, acredito piamente que ele faz isso tudo sem pensar muito, sem seguir essas regrinhas, ou ter consciência disso, apenas sendo sincero consigo mesmo e querendo contar uma boa história, nada de mais.

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