sexta-feira, 25 de julho de 2003

A visita

O portão da casa dela estava fechado. Pensei duas vezes antes de ligar, pois não tinha nenhuma vontade especial de vê-la. Sabia que a noite seria extremamente enfadonha, com conversas sobre nada e dicas de como ter uma vida mais feliz. Assim, como se isso fosse questão de seguir regras.

Ela disse que desceria em alguns instantes e não estava mentindo. Logo escutei as patinhas, do basset preto que eu tinha visto apenas filhote, de encontro às escadas. Ela abriu o portão, dei apenas um beijo, no lado direito do seu rosto, e nos abraçamos. Acho que foi a primeira vez que nos beijamos no rosto. Não dei tempo para nos tornarmos amigos assim que terminamos. Apenas nos falamos por telefone ou e-mail. Uma vez a encontrei dentro de uma boate e logo em seguida fui embora. Não que eu sentisse nada por ela, acredito piamente que não, mas por não querer conversar com ela.

Dessa vez, o caso era um pouco mais pesado, o motivo era impossível de se evitar. Sua mãe havia falecido há três semanas e tinha prometido fazer uma visita para ela. Transferira esse encontro por todo o tempo que pude, dando desculpas quase diariamente, entretanto, sabia que esse dia chegaria. Resolvi encara-lo, então.

Sentei-se à mesa da sua cozinha, junto a todas suas compras para a casa. Brinquei que ela estava se transformando numa dona-de-casa de mão cheia e percebi que ela encarava o meu humor de maneira sadia. Perguntei cordialmente, com o intuito de não deixar o silêncio se apoderar do ambiente, sobre todos os familiares que havia conhecido. Ela disse, de maneira simples e direta, que todos iam bem. Tudo corria da maneira civilizada como aprendemos nas melhores cartilhas. Ela preparava o jantar e dizia que estava pronta para sair exatamente no momento que eu havia chegado. Como eu estava muito atrasado, ela pensou que não viria mais.

O telefone tocou. Ela atendeu e disse que já ia. Era sua avó, que morava na casa de baixo, passava mal e pedia ajuda. Ela desceu, como tinha visto inúmeras vezes sua mãe fazer, e eu fiquei na cozinha, esperando-a para começar a jantar.

O cachorro me distraiu por alguns minutos. Ele teimava em subir no meu colo, e eu não deixava. Depois, ele e eu nos cansamos. Sentado à mesa estava e fiquei. Olhei para o lado para procurar algo para fazer e observei a mesa com pasta de dente, xampu, papel toalha e outras coisas pequenas. Tentei ler todas as embalagens para passar o tempo, mas isso me levou apenas alguns segundos. Da cadeira onde estava, pude escutar a avó dela tossindo e com dificuldade para respirar. Tentei lembrar quando tinha ouvido algo parecido e não consegui. Toda a cena para mim já era um pouco constrangedora porque parecia que aquele não era o meu cenário, nem a minha deixa. Levantei-me e fui no quarto dela olhar na estante dos livros se tinha algo novo de bom. Tudo o que encontrei foram novas versões para os mesmos livros de espiritismo que ela tanto gosta, e eu detesto, com mensagens positivas e felizes sobre a vida. Procurei os livros que eu tinha dado a ela e, com algum esforço, os achei. Me senti um pouco orgulhoso. De certa forma, parecia que ela ainda não tinha me esquecido por completo. Fui no aparelho de som ver os cds e pude comprovar que ela não tinha mudado muito. Ela parece que parou no tempo e não tem nenhuma vontade, ou necessidade, de avançar. Talvez por viver sempre dentro do turbilhão de informação, onde a cada dia apareça uma coisa nova, que logo é descartada por outra coisa mais nova, o culpado seja eu, que não consigo parar para gostar muito de apenas uma coisa. Ou talvez a culpada seja ela por criar barreiras para gostar de outra coisa além do que está acostumada. Porém, a culpa pouco importa, somos diferentes e não conseguimos agüentar nossas diferença, essa é a verdade.

Fui para a televisão e a liguei. Já fazia vinte minutos que ela tinha descido e ficar sem fazer completamente nada estava me entediando ao extremo, exatamente como eu havia previsto. Mal eu sabia o que me esperava.

Escuto o telefone tocar e ignoro completamente. Acho um pouco cara-de-pau atende-lo, já que eu não sou mais nada dela nem deveria estar ali naquele momento. Na melhor das hipóteses, não adiantaria nada atender. Já aclimatado com a cadeira ao lado da cama dela, assistindo televisão, ouço sua voz vindo da janela do andar de baixo. Ela me gritava para descer num tom próximo ao desespero. Encaminhei-me para a porta e encontrei o cachorro com o rabo abanando já me esperando para descer. Ao abrir a porta, o bicho desceu como uma flecha, sem me dar nenhuma possibilidade de segura-lo. Desço as escadas observando e rindo com o cão se espatifar em cada degrau. Minha cabeça não pensava em mais nada, apenas naquele bicho preto na minha frente. Chego no andar de baixo, toco a campainha e nada. Escuto ela gritando para a avó respirar. Bato na porta com um pouco mais de violência e logo em seguida ela vem abrir. O cachorro corre para o quarto onde está a avó e ela vai atrás dele, “Tira ele daqui, tira ele daqui”. Subo vagarosamente com o cão entre as minhas mãos. Ainda não tinha noção do que realmente acontecia.

Ao voltar, encontro a porta aberta, “Respira, vózinha, respira, abre a boca, não, não fecha, fica com os olhos abertos, fica com os olhos abertos”, vou para o quarto medindo cada passo meu e chamo pelo nome dela, “Respira vózinha, respira vózinha, não pode ser, de novo não”, fico debaixo do batente, a avó com os olhos perdidos, a boca escancarada, o rosto torto, ela apoiava a avó tentando faze-la ficar acordada, “Olá”, digo com uma voz grave que normalmente não é minha, a avó tem um lapso de sanidade, os olhos ganham vida por um segundo ou menos e me observam, “Tudo bem?”, meio pergunto, meio afirmo, ela pára de repetir a ladainha, a avó perde o olhar logo em seguida. Ela deixa sua avó deitar na cama para tentar fazer melhor a ventilação e a massagem, mas a velhinha não se levanta mais. Ela dá um grito de negação, ao perceber que todo o seu esforço foi para um fim inevitável.

Estanquei onde estava. Não me sentia útil para mais nada. Logo em seguida, ou demorou um bocado de tempo, chegou uma tia dela e os médicos do pronto-socorro, todos atrasados. Eu fui para a sala e só consegui pensar naqueles centésimos que passaram logo depois da velhinha me ver. O que será que passou na cabeça dela naquele momento? O que será que ela pensou, se é que ela pensou, quando me viu na porta? Eu, que ela só tinha visto uma única vez, num almoço no natal, que bem provavelmente ela não se lembrava. Será que ela ainda estava sã, ou apenas aparentou? Se eu conseguisse saber o que ela pensava, se eu tivesse plena certeza do que ela pensava, de quem ela era naqueles instantes, naquele exato momento, será que eu não teria desvendado o exato significado da vida?

Demorei mais uns vinte minutos lá, e quando descobri que eu era um completo desnecessário – apesar de o suspeitar disso sempre – fui embora. Sei que a vida dela será completamente diferente. Não necessariamente ruim, nem boa. Sei que os dois choques dentro de um mês tornam qualquer existência mais complicada, no entanto, a coisa que mais penso até hoje, por mais que isso possa parecer insensibilidade, é naqueles instantes finais.

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