quarta-feira, 13 de agosto de 2003

doador

As entradas de hospitais são exatamente iguais. Todas. Acho que no mundo inteiro, não haverá uma que seja diferente. Sempre com esse ar frio, impessoal, com esse cheiro de morte, com pessoas zanzando de um lado para o outro. A recepcionista me apontou o andar que deveria ir. Esse, pelo menos, era um hospital particular e, por isso, tinha algumas características próprias a estes. Era um lugar limpo, aliás, que prezava por, além de ser limpo, parecer limpo. Assim, a emergência ficava longe da entrada principal e o cheiro de sangue, éter, álcool podiam ser disfarçados com algum tipo de desinfetante ordinário. Por onde quer que você olhasse havia alguém de roupa azul escura, com máscara e luvas de borracha empurrando carrinhos de limpeza.

Fiz um esforço imenso para pensar apenas na limpeza, apenas no dia-a-dia do hospital, mas quando entrei no elevador já sentia o meu real motivo pulsar mais alto que qualquer outra coisa. Outros pensamentos seriam apenas paliativos, placebos para me anestesiar por segundos, instantes antes da resposta que eu procurava.

Fui no hospital para buscar um exame. Não, não tinha suspeita de nenhuma doença. Deveria ir buscar um exame de compatibilidade. Meu irmão, meu único irmão, aquele que cresceu comigo, jogou bola, viu minha primeira namorada, que brigou comigo e contra mim, aquele que é talvez a pessoa mais presente na minha vida tem um problema nos rins. Vai ter que fazer um transplante. E como a fila para esse tipo de operação é enorme, resolvemos – a família inteira, eu e minha mãe – fazer os exames para saber se poderemos doar um dos nossos para ele.

É incrível como só suspeitamos do problema dele no ano passado, quando a doença já tinha se tornado irreversível. Ele sempre apresentou – segundo me explicaram depois – todos os sintomas. Apenas eu sabia, nem minha mãe suspeitava. Ele sempre passava mais mal que todo mundo quando bebia. Dizia que, às vezes, aparecia alguns traços de sangue na urina, e tinha a pele ligeiramente amarelada. Aliás, bem mais que todos nós da família. Porém, sempre pensamos que somos imortais, que isso não vai acontecer e não nos informamos direito.

Agora, toda semana ele tem esse martírio que é a hemodiálise. Tem que vir aqui filtrar o sangue já que os seus dois aparelhos idênticos, que todo mundo possui, não funcionam mais. Ele teve que largar a faculdade. A mesma a qual tinha batalhado tanto para entrar. Meu irmão, o que montou a banda comigo, o que eu chamava para tomar chope na sexta quando sabia que não havia mais outros amigos, o que jogava videogame comigo.

Estou aqui no elevador e não tenho muitas opções. Basta-me esperar pela resposta que vem num carimbo do hospital em papel timbrado. Vai dizer apenas “doador”, ou “não-doador”. Impessoal, como tudo aqui. Bem provavelmente nem terei um nome, apenas uma sucessão de números. Serei o 1255.

Imagino como deve ser a vida de alguém sem um dos rins. O médico disse que quase não há diferença. Apenas não podemos “dar mole para o destino”. Disse que se há um caso na família, todos os irmãos devem tomar mais cuidado. Isso se resumia a mim, apenas eu. Fico me perguntando, então, e se acontecer comigo, depois? E se eu tiver esse mesmo problema depois, essa mesma merda de doença? Quem poderá ser meu doador? E se eu não conseguir um doador? Será que me tornarei um dependente, como a do meu irmão agora? Estou com medo de não poder doar o meu rim, mas acho que ainda mais de poder doar. Viverei uma vida com limitações, com preocupações extras, além de passar por uma cirurgia que é complicadíssima. E se também houver rejeição? Todo o nosso esforço não será em vão?

Posso estar parecendo um insensível, meu irmão, meu único irmão mal e eu negando ajuda. Entretanto, essa ajuda é um pedaço meu, algo que vem de dentro de mim, literalmente. E talvez seja inócuo. Por mais que todos os exames digam que eu posso doar, nada me garante que o meu rim se encaixará perfeitamente nele. Depois, terão que jogar no lixo um pedaço meu, eu viverei uma vida limitada e tudo para que?

Pronto, o elevador chegou, estou apenas há um corredor da bancada com todos os papéis onde sacarão o número 1255 e me entregarão. Não há nada nos corredores, nenhum barulho além de uma tosse incessante lá bem no fundo da minha cabeça. Talvez só haja dentro da minha cabeça mesmo. A tosse lateja minhas têmporas, sinto meu corpo quente, meu corpo está molhado de suor. A cada piscada de olho que dou, a luz diminui e as lâmpadas ficam mais sozinhas. Minhas pernas pesam alguns quilos a mais que o normal e só tenho que atravessar essa porta de vai-e-vem. Não adianta pensar em mais nada, não adianta dizer depois que não quero mais doar meu rim, se aquele papel disser que eu sou o doador, eu serei o doador, meu futuro está na mão de algo irracional, sem cronograma ou perspectiva. Tudo agora é questão de sorte. Entrego o meu cartão, o documento que me identifica, o número 1255, e a moça, de azul claro, com máscara pendente verde, me entrega o envelope. Pesa uma tonelada ou mais. Sento na poltrona logo a frente da atendente, ela fica me olhando, o que será que ela está pensando nesse exato momento? Será que ela imagina o motivo de eu estar aqui? Será que ela já sabe o resultado do exame e está apenas esperando a minha reação? Ela quer saber se sou um sádico ou um egoísta. Ela me olha com uma expressão de curiosa. É melhor eu ir embora. A poltrona me agarra, me levantar é complicado, porém é necessário, tenho que ir embora antes que a atendente pense que eu não me importo com o meu irmão. Mas, por que todas as pessoas me olham? Por que aquele senhor ali está rindo para mim? Será que ele sabe de alguma coisa?

É melhor parar com essa paranóia. Vou sair desse ambiente, vou sair daqui de dentro, vou passar daquela porta que eu estou vendo agora e vou abrir o envelope.

Se der positivo é quase o meu fim. Tudo o que eu programei para a minha vida terá que ser reavaliado. Negativo quer dizer que eu não sou, não posso ser doador. Isso quer dizer que eu vou viver o que sobra da minha vida exatamente como eu quero, sem nenhum tipo de problema ou entrave, sem limites externos. Também significa que meu irmão terá que viver com menos esperança ainda. Com menos perspectiva de ter uma vida normal novamente. Terá que esperar o resultado da minha mãe sair para saber se ela será a escolhida. Minha mãe, minha única mãe, vai ficar defeituosa por causa dessa doença escrota. Tenho certeza absoluta que minha mãe não vai se importar com o transplante. Ela tem que ser a doadora, assim tudo estará correto. A mãe que se doa para salvar o filho. É quase bíblico. Eu não posso ser doador, eu não quero ser doador...

Rasgo o papel e... Ne. Nem dou tempo de ler o resto da palavra, já corria por todo o corredor, descendo os andares pelas escadas, pulando que nem um vestibulando aprovado. Minha mãe que resolva o problema dele.

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