quinta-feira, 14 de agosto de 2003

Novidades

Não é possível ter certeza se ele ainda se lembra do início de tal fenômeno. Faz tantos anos e ele provavelmente já não consegue conceber sua vida de maneira diferente. Parece que, para ele, sempre foi assim. Num sentimento de que as coisas por mais que se apresentem travestidas em novidade, nunca as são realmente. Elas se repetem como num ciclo, que acontece, e já tinha acontecido, antes realmente de acontecer pela primeira vez. Explicando:

Na primeira vez ele era novo, provavelmente uns dezenove, vinte anos. Estava na casa de uma amiga, tarde da noite, uns conhecidos haviam se juntado para tomar um vinho, comer e conversar besteiras. Certo momento, alguém começou a falar sobre Machado de Assis, um autor que ele tinha lido apenas algumas obras embora gostasse bastante. Ficaram sobre a mesa, no meio de toda a roda, dialogando sobre a obra do escritor e um sujeito disse algo sobre “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Ele nunca tinha lido exatamente esse livro. O rapaz descreveu com minúcia todas as aventuras e as desventuras amorosas do personagem falecido e ele escutava com um extremo de atenção. Cada detalhe das paixões do defunto, os seus envolvimentos, as ironias, o humor fino, e ele prendia tudo dentro da alma.

No dia seguinte, como em todas as manhãs, levantou-se e foi para a cozinha tomar um leite com chocolate. Estava de costas para a pia, com o copo na mão e o levantou para toma-lo quando uma idéia assaltou sua cabeça. Não podia doma-la mais, o conceito era soberano, dominava-o. Tinha certeza mais que absoluta que sabia de cor as “Memórias Póstumas...” antes mesmo de o amigo ter contado no dia anterior. Era um fato indiscutível, impassível de erro, ele já sabia do livro, já conhecia todos os trechos narrados. Ele se lembrou da mesa na véspera, com o fulano no lado oposto ao dele, da maneira empolgada que destrinchava os capítulos, e parecia que ele assistia a uma reprise. Já conhecia o livro, não era necessário escuta-lo tudo de novo. A dedicatória para o verme, a história da morte, a volta no tempo para quando o protagonista ainda era uma criança, o seu envolvimento precoce com uma mulher mais velha, a ida para a Europa, a paixão por uma mulher que se casará com um próximo, as traições, a ausência do casamento, a velhice, a morte de amigos e parentes e, novamente, o seu falecimento, tudo parecia já conhecido há muito. Como se ele sempre soubesse disso e não tivesse tomado contato dessa obviedade no dia anterior naquela mesa.

Ele achou estranho, mas não lutou contra essa emoção, até deu um sorriso que tinha algo de soberba. Não era desconfortável sentir o que ele sentia. Era uma certeza que ele possuía, não tinha dúvidas, ele sabia que conhecia toda a história antes mesmo de tê-la ouvido na véspera. O que o incomodava um pouco, talvez a única coisinha, era entender o motivo que o tinha feito escutar toda a história, como se não a soubesse. Isso, ele não fazia a menor idéia do porquê.

O prodígio começou a acontecer com freqüência. Via um filme e, na saída, pensava que conhecia o filme há anos, mesmo que fosse um lançamento visto numa pré-estréia dentro de um festival. Acontecia em livros, em conversas, em cenas do cotidiano, tudo quanto fosse novidade, ele tinha a certeza que já tinha passado por tudo aquilo, antes mesmo de acontecerem pela primeira vez.

Certo dia sem mais nenhuma importância, passeou com a namorada em um parque, dentro de um museu, e disse para ela que, assim como ela, era a primeira vez que andava naquele bosque. Quando ela foi embora, lembrou que já conhecia aquelas árvores, a gruta, o chão de terra cercado pelas gramas, já tinha visto aquilo tudo. Tentou lembrar de quando e a memória não veio. Ficou na dúvida se era a primeira vez ou não que tinha ido àquele parque. Confundiu-se um pouco com a idéia de não lembrar de quando tinha ido. Mas tudo era tão familiar, as luminárias quebradas, as grandes palmeiras imperiais, o vão central largo debaixo das árvores centenárias, a ponte em cima do pequeno riacho que percorria todo o parque. Ele já tinha feito o mesmo percurso outra vez. Mas quando?

Depois, esses sentimentos começaram a acontecer com mais freqüência e por razões muito mais cotidianas. Saía de casa e avistava um carro passando na sua frente e logo depois sabia com certeza que aquele carro cruzaria na frente da sua casa. Dobrava a esquina e encontrava uma barraquinha de balas e chicletes e, ao passar pelo vendedor, lembrava que já sabia que a barraquinha estaria ali, mesmo que fosse a primeira vez que ela lá estivesse.

Todas as visões únicas se desdobravam em outras mais. Até podia se surpreender com alguma coisa qualquer, porém, no instante seguinte, se sentia estranho por ter se assustado com o fato pois sabia da sua existência desde sempre. Era como se ele pudesse desvendar o passado, ao invés do futuro. Sabia que não era vantagem nenhuma saber exatamente o que tinha acontecido no passado, mas, quando se acostumou com o fenômeno, achou, como da primeira vez, uma certa graça disso. Não tinha coragem de contar para ninguém, mas ria sozinho se achando uma espécie de vidente pelo inverso.

Hoje convive normalmente com esses estranhos acontecimentos. É muito complicado para ele falar como as outras pessoas sobre o que aconteceu, pois para ele, era inegável que tudo já tinha acontecido antes e ele sabia que já tinha visto, ou ouvido, tal história anteriormente. Acostumou-se a isso. Vive num constante ir e vir no tempo. Os fatos nunca são exatamente novos para ele por muito tempo, se tornam comuns e evidentes assim que acontecem, contudo, e essa ressalva é a questão, para antes de terem sucedido.

O único fator que ainda o deixava um pouco intrigado é ter a extrema consciência de todo o procedimento. Por mais que ele não passe pelos fatos anteriormente, e esteja de acordo que o episódio era inquestionável mesmo antes dele ocorrer, como ele sabe deles depois? E, pior, tem a noção que ele não os viveu e, ainda por cima, depois sabe deles, como se fossem inconfundíveis? É uma certeza inquestionável e, mesmo assim, improvável. Ele apenas sabe. E ele conhece todo o processo. Ultimamente, porém, ele desistiu de achar a resposta para isso também. Apenas vive essa vida da maneira que consegue. Por mais que pareça caótica, ele se vira bem.

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