quarta-feira, 13 de agosto de 2003

Qualquer pessoa desavisada que fosse naquela casa não suspeitaria quem é o seu dono. Uma casa simples num condomínio de mansões luxuosas que vive quase o dia inteiro com a luz apagada, “Por economia”, disse sarcasticamente seu dono. Este, um senhor meio careca, meio grisalho, que vive com uma camisa meio velha dois números maiores que o dele, com um short curto e rasgado. Entramos na sua sala, completamente enfumaçada, o dono, cigarro dentro do cinzeiro, assistia televisão e comia algum biscoito.

Paulo Horácio Cunha, professor titular da universidade federal, professor da cadeira de filosofia da comunicação que teve como seus alunos três dos maiores escritores da atualidade não se considera o guru dessa nova geração e um cético em relação à razão, “A razão morreu”, determina.

N – Professor Paulo Horácio, seu último livro, “O elogio da loucura – uma paródia”, é considerado um marco nos estudos filosóficos atuais, principalmente porque ela é uma obra de fácil acesso, para todas as pessoas. A pergunta é ruim, mas inevitável, você se considera o guru dessa nova geração?

Paulo Horácio Cunha – De maneira nenhuma.

N – Mas, você deu aula para três dos mais aclamados escritores da atualidade (Carlos Amorim, Eduardo Linsterberg, Hélio Prattinni)? Não seria coincidência demais?

PHC – Não.

N – Não, desculpe-me, não o que?

PHC – Acho que seja só coincidência mesmo.

N – Mas a sua obra é chamada de definitiva, você não acha isso interessante, principalmente numa época onde se dizia que todas as obras definitivas tinham sido jogadas para debaixo do tapete?

PHC – eu também não acredito nessa história de definitiva. Eu escrevi o que eu acredito, se essa é a verdade, essa é outra história. Aliás, eu concordo mais com você quando você disse que não temos nenhuma dessas certezas pré-fixadas.

N – Exatamente. No seu livro você diz que a razão morreu em algum lugar no final do século XIX, você poderia falar um pouco sobre essa idéia?

PHC – você leu o meu livro?

N – sim, li, achei muito interessante.

PHC – pois então. ‘Tá tudo lá já. Não preciso me repetir. Basta que você copie todas as minhas opiniões e coloque no seu jornal.

N – revista.

PHC – na sua revista.

N – Mas, me diga professor Paulo Horácio, o que o senhor quis dizer com “A morte da Razão”?

PHC – não foi você que disse que a minha linguagem era acessível a todo mundo? Eu até não concordo, porque tem tanta gente que nunca vai entender a idéia de que a razão não pode resolver nada, hoje em dia e talvez nunca pôde realmente.

N – como assim?

PHC – ‘tá bom, você quer que eu fale. Eu estou de bom humor hoje. Vou me deixar levar. A razão, meu caro, não serve mais. Ela serviria se explicasse tudo, se tivesse todas as respostas. Ela renasceu com o Iluminismo para acabar com o domínio da igreja católica sobre os homens. A igreja não dava todas as respostas de maneira clara, mas a qualquer dúvida ela tinha a desculpa da fé e de deus. Nada melhor foi inventado nos últimos séculos, e talvez em toda a história, como deus, ou os deuses. É perfeito. Quem criou o mundo? Deus. Por que minha plantação não rendeu o que eu esperava? Porque deus quis. Deus se transformou em instrumento de resignação. E é tão bom que até hoje ele é utilizado.

N – mas por que a razão não serve mais?

PHC – Como dizia, a razão veio acabar com a supremacia – e opressão – da igreja sobre os homens. Começaram a ver que não choveu o suficiente na plantação do sujeito e por isso ela não rendeu o suficiente. Não foi obra divina. Começaram a se perguntar o motivo de não ter chovido tanto na plantação dele e ai chegamos até hoje, onde tudo deve ter um motivo lógico, plausível e facilmente decodificável por qualquer um.

Porém, o problema ficou implícito, agora. Usando ainda o exemplo do sujeito que reclamou porque ele não teve a colheita esperada. Ele pode culpar a falta de chuva, e isso é fácil, mas, por que não choveu então o necessário? Ele, considerando o hábito, dirá que foi por vontade de Deus. Então vem um meteorologista e diz que é um fenômeno natural, de tantos em tantos anos a chuva escassa mesmo. Mas por quê? O agricultor quer saber. E assim irá para sempre. Você deu o direito do cidadão comum perguntar.

N – mas isso é ruim?

PHC – não, não disse isso. Porém, é difícil afirmar também se é bom. Ao confiar demais na razão, espera-se que ela tenha a resposta para tudo e ela não tem. Por que de tantos em tantos anos a chuva escasseia? Talvez haja a explicação lógica, talvez por causa do ciclo de chuvas, ou por qualquer outro motivo, eu não tenho a mínima idéia do porquê. O que é fato, para mim, é que chega em certo momento que a razão não consegue explicar nada. Nem que seja de uma maneira ampla e irrestrita.

N – Como assim?

PHC – bem, se voltássemos no tempo, se fizéssemos as mesmas perguntas que sempre foram feitas, não conseguiríamos achar nenhuma resposta. Qual o motivo que a filosofia nasceu? Para responder essas perguntas. Podemos responder tudo, menos as grandes perguntas.

N – você quer dizer: “por que estamos aqui?”, “quem criou o mundo?”, “para onde vamos?”, essas coisas?

PHC – é por aí.

N – E você acha que a razão nunca conseguirá responder exatamente essas perguntas?

PHC – eu não tenho a menor idéia disso. Qualquer tipo de aposta agora é um chute. É certo, porém, que vivemos uma era fragmentada. Aliás, o Brasil sempre foi um país ótimo para vermos melhor essa idéia.

N – como assim?


PHC – cacete, tu é muito lacônico mesmo, hein? Bem, vou entrar pelo lado da sociologia de botequim, que é a minha especialidade. Aliás, essas definições, de o que é sociologia, onde termina a antropologia, onde começa a filosofia, está tão embaçada hoje em dia... enfim.

A tal modernidade que é cantada em prosa e verso por vários estudiosos tinha pelo menos um fato incontestável: a bipolarização. Ou eles ou nós, ou direita ou esquerda, ou eua ou urss. Tomava-se partido de um dos lados de maneira cega e inconseqüente, e o outro lado era o inimigo. Não importava a realidade, apenas a ideologia. Acreditava-se fanaticamente nas cores da bandeira que defendíamos.

Assim, quando alguém era católico, por exemplo, detestava os protestantes, ou qualquer dos exemplos que podem ser formulados. O genuíno no Brasil é que aqui, o sujeito ia à igreja católica no domingo, porém, se precisasse de uma ajudinha mais forte e urgente, procurava o candomblé na segunda, fazia algum despacho ou coisa parecida. Não havia uma obediência infinita pela religião oficial. Os motivos para isso são vários e eu sou a pessoa menos apta a explicar cada um deles.

Agora, por outros ‘n’ motivos que não serei eu a te explicar, o brasileiro – com certeza, o mundo também – passeia tranqüilamente entre a razão e a fé.

Aliás, acho essa a idéia mais original.

N – Qual idéia?

PHC – essa idéia, meu filho, de não termos mais nada em que acreditar cegamente. Nem na razão. A razão, a ciência veio para substituir uma a religião nas explicações infinitas. Logo, a razão se transformou numa crença. E nada mais irracional que crer em algo. Só que a razão tem um defeito se comparado com os credos convencionais: ela não tem a carta branca, ela não tem a chave especial, ela não tem a resposta para tudo, ela não tem deus. Por isso a junção das duas vertentes nem é tão, como posso dizer, incongruente.

N – você é a favor de acabar com os julgamentos feitos pela razão?

PHC – que pergunta mais anos 80. Parece que eu tenho que tomar partido de um lado. Razão versus emoção, quando o correto seria razão e emoção.

N – quando você achar que a razão começou a perder força?

PHC – quando começamos a desconfiar das coincidências. Tudo, de vez em quando, parece muito ensaiado. Não pode ter uma explicação lógica para isso. Deve ter algo inexplicável, ainda, por aí.

N – então você acredita em deus?

PHC - De onde você tirou essa idéia absurda?

N – você disse que a razão não explica nada.

PHC – sim, e daí?

N – logo deve ter um outro tipo de explicação...

PHC – Por quê?

N – porque senão não haverá explicação para todas as perguntas iniciais...

PHC – Sim, e daí, repito?

N – você não se importa, então, com as perguntas iniciais?

PHC – não, aí é que mora a minha idéia de que a razão não tem nenhuma credencial. Ainda não sabemos nada. Não saberemos tão cedo e qualquer pensamento para resolver isso é apenas agonizante. Se a vida não tem motivo, e isso é um fato, por que ficar anos da sua vida pensando num motivo para ela? Escolha aleatoriamente qualquer coisa, escolha e mude de opinião, como quem muda de roupa mesmo, a todo o momento.

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