terça-feira, 28 de outubro de 2003

Seu Livro?

No intervalo do primeiro ato para o segundo a vi pela primeira vez. Poderia tentar descrevê-la, mas qualquer palavra que utilizasse seria de menor expressividade que o necessário. Ela é alta, cabelos dourados escorridos que passam pelos ombros ignorando-os até a metade das costas. Eu tomava um café apoiado no balcão e me era impossível não estar com os olhos grudados nela. Me sentia diminuto porque não havia a possibilidade de, de alguma forma, me aproximar. Não sei se a expressão exata é essa, mas sentia algo parecido com a culpa.

Tenho uma namorada, como nunca tivera nunca. Estou com ela há mais de seis meses – fora nosso aniversário no dia anterior – e ela me deu uma carta dizendo-se muito surpreendida e feliz por estarmos juntos. Falava de nossas semelhanças, citava nossas brincadeiras e terminava com uma citação poética. Chorei discretamente abraçado no seu pescoço por alguns instantes maravilhosos. Não tenho dúvidas que gosto dela. Não tenho dúvidas que ela combina comigo, que ela me entende, que é linda, que adoro ficar ao seu lado. Entretanto, depois desse tempo inédito para mim, a empolgação, como é de se esperar, declinou-se.

Na volta para o segundo ato, mudei de lugar na platéia indiscriminadamente e percebi que, por uma questão de coincidência, sorte ou sei lá que nome pode-se dar para isso, a loura televisiva estava na minha frente, um pouco à esquerda. Até ai, não há nenhum problema nem nenhuma solução, estávamos insossos como havíamos de estar. Então ela olhou para trás. Na primeira vez para nenhum lugar, como que mapeando o ambiente, na segunda próximo a mim, na terceira para mim. Tinha dez, quinze minutos de espetáculo e ela virou três vezes para trás. Perdi completamente o fio da meada d’ “O Avarento”.

O problema era particularmente maior porque a loura me proporcionava exatamente aquilo que minha namorada não possuía: a perfeição estética. Ao olhar para ela eu a desejava mais que, talvez, outra mulher ao alcance. No intervalo me perdi observando nuances do seu corpo e imaginando sua voz, sua quentura, a textura da sua pele... A cintura fina, o detalhe da pele da barriga queimada de praia que aparece quando ela se mexe, o cabelo meio preso, meio caído, os olhos extremamente claros, o quadril generoso, o sorriso largo mostrando todos os dentes brancos, meu deus, o sorriso largo...

Tenho que dizer: vivo praticamente com a minha namorada – moramos um perto do outro e consigo ir na casa dela a pé quando quero. Os pais dela são ótimos. Ela gosta das mesmas coisas que eu. Estar junto dela é certeza de me sentir confortável, bem. Me sinto criando um relacionamento estável, exatamente como deve existir entre pessoas adultas e maduras. No entanto, algo não me deixa esquecer que tenho apenas vinte e dois anos. Tudo bem, não quero entrar na história do “desperdício de vida” tão cantada aos quatro ventos. Parece uma ladainha dizer que há benefícios em ambos tipos de relacionamentos, tanto na solterice convicta quanto na união duradoura. Falar com esse mesmo discurso, já tendo escutado diversas vezes amigos reclamarem da vida por isso, e contra-argumentar da irresponsabilidade dos atos, seria como me contradizer e ter um comportamento pouco, digamos, prático (apesar de que a praticidade nessas horas é das piores coisas que podemos fazer).

Pela completa falta de experiência em relacionamentos longos e estáveis, acredito que este tenha uma certa vantagem sobre mim por causa do seu caráter inédito (que também é um outro tipo de fetiche). Todavia, o que eu quero, se é que posso colocar nesses termos, é que ela, a que esteja comigo, me proporcione prazer tanto com meus olhos abertos quanto fechados, apenas isso. Não, também não quero cair no clichê da mulher perfeita, não é isso. Seria uma bobeira que acredito ter deixado para trás há tempos (mesmo que ainda tenha recaídas constantes). Muito menos confirmar a tese da constante insatisfação com a posse, o próximo e o desejo pelo distante, o do vizinho. Acho até que, de todas as teorias essa é a mais válida no meu caso, pela comprovação prática e estatística. Entretanto, dessa vez não. O que eu quero é simplesmente uma união da loura do teatro com a minha namorada.

Depois da terceira olhadela, ignorei por completo o espetáculo e apenas mirava os fios claros tão pertos do toque da minha mão. Ela demorou, mas olhou novamente para trás, dessa vez rapidamente. Um frio na barriga me tomou de assalto junto com os olhos dela. Foi então que num ímpeto, numa loucura minha, me aproximei dela que nem um cão desgarrado, catei seu rosto, o aproximei do meu e violentamente beijei-a sobre as cadeiras do teatro. Não, não isso foi apenas a minha imaginação agindo.

Esperei uma próxima virada de cabeça, mesmo que não suspeitasse da atitude que eu deveria tomar, porém ela não retornou. No início senti-me angustiado, pensei que tinha perdido uma oportunidade única, que tudo era culpa minha por não ter tomado atitude nenhuma, num espaço altamente propício para flertes e afins, como se pode perceber, mas logo a minha atenção retornou para a peça e a loura se transformou num belo preenchimento de tela.

O sentimento de culpa, o qual aludi no início do texto, não deixara nem um pequeno traço de vestígio. Parecia que ele só tinha passado para demonstrar que ainda existe, aqui dentro em algum lugar, nada mais. Mesmo assim, quando as luzes se acenderam levantei-me rapidamente para não me deixar cair em tentação outra vez. Todavia, ela se virou ainda com mais pressa que eu para trás e me fez uma interrogação. Ao menor rumor da sua voz quieta, meio rouca, quase me arrepiei. Com um livro na mão ela me perguntou se o dito cujo era meu. Primeiro não sabia o que responder, depois de alguns centésimos, consegui concatenar algumas fagulhas de sinapses e pude negar com a cabeça. Ela olhou para outro lado a procura de alguma coisa ou alguém e eu consegui fugir do teatro um pouco embaraçado.

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