terça-feira, 2 de dezembro de 2003

O homem que escolheu escrever tudo para todos.

Não, não é importante apresentá-los. O que vale saber é que ele – quem quer que seja – se propôs a um destino absurdo, irreal. Talvez incentivado por um ou outro filósofo ainda na adolescência (entre dois chopes, provavelmente), ou numa leitura descuidada de algum autor mais ou menos relevante. Resignou-se em casa e repetiu para si mesmo durante dias para ver se acreditava – coisa complicada: deveria escrever algo que fosse tudo para todos. Exatamente isso, sem exagero ou ataques falsos de modéstia. Ignorou que vivemos fragmentados ora em ruas, ruelas, ora em avenidas e até mesmo em rodovias, e gritou a plenos pulmões de fronte colada num espelho que iria escrever essa mensagem.

Não, não deveria ser nada religioso, pois considerava a religião apenas um dos aspectos de sua narração. Começou a enumerar critérios para sua missão e podemos copiá-los aqui. Ele anota: “devo ser interpretado pelo leigo e pelo cristo. Pelo que perdoa e pelo que fala. Pelo velho e pelo mendigo. Devo corresponder a verdade para a mulher e para aquele ali que enxergo dessa sacada. Para o transeunte e o paciente. Devo ser indispensável para o crente e para o pobre, devo ser a voz para o conhecido e para a pedra no caminho, devo...”.

Não, ele não se iludia em atingir todas essas propostas. Ele tinha a certeza; mais dura que pedras de gelo do norte do Canadá. Para o leitor mais acostumado com as ditas realidades cotidianas, que até agora acha que esse sujeito é louco (só e apenas), podemos confidenciar, já que não mudará o desenrolar de coisa alguma, que o sujeito dessa história não produzia nada para ninguém. Rolava de um lado para outro na cama com esse teorema afixado, que o espetava atrás dos olhos e dos ouvidos de cinco em cinco segundos, como se fosse um pequeno alfinete.

Não havia um pingo de escrota pretensão por trás dessa absurda idéia. Ele pensava em submergir tão profundamente dentro de si mesmo, como num transe, como um mergulhador de campos de petróleo, onde nenhum outro espírito jamais pisou e apenas descrever em altas e boas letras o que ele via e sentia. Queria fundir-se com todas as verdades e se transformar na única, isolada, solitária. O porquê de ser ele, e não outrem, não me pergunte, não faço a mínima, assim como você. Talvez, como citado parágrafos atrás, por (más) influências. Mas, quem escuta e não se empolga a fazer algo que não quer fazer, apenas porque naquela hora parece que é o sentido absoluto?

Não aparecerá ninguém para responder, tenho certeza. Fora alguns idiossincráticos, ou apegados em dogmas, os que não se incluem como pessoas físicas e mutantes. E, no caso específico dele, nada o impedia de se alvitrar o absurdo. Sentiu como numa obrigação, queria porque era esse o seu porto final. Recusaria todas as facilidades, queria rasgar a carne e deixar transbordar o sangue vermelho e viscoso, enxergar a única novidade, ou aquilo que abarcaria todas as outras, anunciadas como novas pela indústria publicitária que nos envolve desde o mais íntimo umbigo.

Não pense que ele desistiu logo no início. Pelo contrário, se fosse essa a minha intenção, poderia descrever o seu respirar depois de cada retorno à superfície. Entretanto, eles não diferiam muitos uns dos outros. Colecionou uma galeria de resultados inoperantes e de teses absurdas e nati-mortas. Litros de soluções atiradas literalmente ao léu. No início, e então poderemos presenciar seu improvável único erro crasso de cálculos, tendeu a escrever um grande romance. Setecentas páginas, esse era o número que circundava sua cabeça como um astro menor em torno de sua estrela de predileção. “Lembrai dos clássicos”, repetia sozinho.

Não passou de poucas palavras – como era dispensável dizer. De maneira mais que óbvia, ao reler seus rabiscos mal datilografados – pois era péssimo com máquinas – enxergou suas diferenças e defeitos que pulavam como milho de pipoca. Ele desenvolveu uma técnica, uma razão, para poder comparar e saber a eficácia de seus produtos. Fazia perguntas aleatórias para o papel e procurava respostas diretas, que não envolvesse nenhuma linguagem figurada. Nada. Não conseguiu nem uma quinta parte das respostas de maneira satisfatória. Foi então que ele adentrou o portão da literatura.

Não que ele também não tencionasse a isso: desde sempre a desejou quão um sedento do deserto a um copo, um único jarro de água doce. No entanto, para abarcar a todos os per ambulantes, como era esse seu deus torto e capenga, subestimou os corações de grande parte dos leitores. Percebeu nesse milésimo instante – já devia ter próximo dos quarenta anos – que se ele escrevesse tudo para todos, não haveria uma só alma penada que não entendesse, pois seria mais transparente que o ar do campo. Mesmo aqueles desacostumados em tratar com as letras, ou aqueles que não tiveram essa opção e (na opinião de alguns) privilégio.

Não, ele não retornou à loucura de escrever milhares de páginas. Resignou-se a uma pequena novela. “Cento e poucas páginas”, podia ecoar em sua casa de paredes brancas e desnudas. Se informo agora sobre seu habitat, o faço para aqueles que ainda não crêem numa existência longe da ideal. Retratava seu desespero frente ao inevitável, à sua total incapacidade de escrever uma pequena história (talvez com “h” maiúsculo) que não sofresse de esquizofrenia.

Não havia a menor possibilidade de escrever tal narrativa na qual embarcassem gamas das mais complexas e contrapontos das mais absurdas distâncias em muitas páginas. E cento e poucas páginas se transformaram num réquiem incessante; mesmo se ele se concentrasse além do normal. E percebeu que início meio e fim também não seriam suficientes – mesmo implorando para uma musa inspiradora qualquer. E ele resolveu sossegar, pois já era noite e estava cansado.

Não pense você, senhor leitor (mesmo que eu duvide que o haja), que eu fui literal; pelo contrário, fui literário. Ele, nosso protagonista, já está velho aqui, ao final da segunda página. Posso afirmar para cada um de vocês que a vida dele não está condensada aqui, está por inteiro. Como tantos outros personagens reais oriundos das imaginações de outros autores (estes sim, com relevância para que seja indispensável que o leiam), este não viveu muito além desta página.

Não há nenhum problema em adiantar o final dessa vida. Porque sabemos, uns desejosos, uns desprezando, outros mortos de medo, que sempre atingimos a mesma meta, uma hora ou outra. E foi exatamente então, já com setenta e alguns anos, que ele se perdeu e se achou no mundo da poesia. Pela primeira vez em sua curta vida tinha um assunto que seria comum, para todos, seria a verdade para todos.

“Não, não seria justo para aqueles pequenos”, e retornou ao marco inicial; com certeza por um julgamento pessoal e intransferível. Tinha tudo e agora não tem nada. Bastava que elucidasse, ele, que vivera tanto dentro de si, que tinha todos os mecanismos para se autodescobrir, o que era o final da vida, o que passa na frente de suas lentes oculares no ínfimo entre o tudo e o nada. Mas não, não, tem-se que fazer um juízo de valor; foi contrário a uma dica que dizia não ser possível ao criador ter moral sobre sua própria obra.

Não seguiu adiante o episódio da poesia. Por motivos diversos que podem ser resumidos, sem querer por isso, abarcar o real pretexto; ele ficou com receio de lembrar do episódio das crianças, tão a contra-ponto de sua vida que visivelmente findava-se.

Não tentou outras formas de literatura, apesar de freqüentar todas conhecidas até o presente momento muito bem. Decidiu cuspir palavras no papel higiênico que ficava em cima da mesa de madeira de lei na sua cabeceira. Assim, como acontecera no início dos tempos, pensou em neologizar, na maneira alemã; mas seu tempo escoava e cobrava-lhe impostos severos, e então preferiu exigir menos de si. Optou por palavras longas, depois palavras de significado obscuros, de cores estranhas, de gostos adocicados e chegou a apenas a duas e duvidou:

Não e sim. Já era o último dia para a sua morte e ele sabia, e todos sabiam e todos sabem agora. Ele tinha que decidir entre as duas mais importantes, àquelas que guiaram sua vivência, como um jóquei faz com um alazão. Um lado ou outro, sem muro para separar, antagonismos explícitos e embaçados quão um boxe de banheiro depois de uma ducha fervendo. Os limites se entrelaçavam exatamente e ele segurava a caneta logo acima do papel para que pudesse escrever o seu último suspiro, a que todos desejam, ao definitivo, ao supremo, e nada. Silêncio, branco, nenhuma palavra foi dita, escrita, ou mesmo copiada. O papel pareceu intocado como sempre foi e sempre será. O homem que se propôs a escrever tudo para todos, decidiu esperar a escolher.

2 comentários:

Anônimo disse...

Vou comentar aqui e no Overmundo.

Belíssima metáfora, assim entendi entre o querer ser e o poder ser de alguém que deseja escrever e escrevendo, destacar-se, atingir o mundo todo.
Na maioria dos casos redundada em fracasso. Muitas vezes não por culpa de quem escreve, que escrever muitos escrevem, mas da perversa lógica do mundo editorail.
abcs

CNC disse...

Vou agradecer aqui, como no Overmundo: obrigado pelos elogios.

Interpretação interessante para o conto.

abraços