quinta-feira, 25 de setembro de 2003

boteco

Cena 1

Boteco mal iluminado e sujo, com pequeno espaço interno, um mesa de ferro espalhada pelo saguão. Seu Ulisses passa um pano em cima do tampo do balcão. Ele está com a camisa azul aberta, como faz todos os dias. Passa por ele Dona Marta, sua mulher, uma morena robusta, porém de baixa estatura, com um lenço no cabelo, segurando uma bandeja de ovos coloridos cozidos. Ela abre a gaveta do balcão e coloca a bandeja no interior. Seus Ulisses dá um suspiro ao olhar para o bar.

Que foi Ulisses?

Nada mulher.

Que foi, homem? Tu ta assim há dias. Me conta o que aconteceu.

Isso.

Isso o que, homem de deus?

Ah, mulher, todo dia é isso. O nosso boteco ta às moscas. Não vem viva’alma aqui.

Entra seu Adenecir vagarosamente. Pele curtida, cabeça chata, muita estrada pela vida.

Tem o seu Adenecir. Ele vem aqui todo dia.

Seu Adenecir levanta o dedo e produz um murmúrio baixo, quase impossível de entender. Seu Ulisses enche um copinho pequeno de velho barreiro e o empurra na direção de seu Adenecir. Não dá maior atenção para ele.

Mas com o seu Adenecir não dá para pagar as contas. Não pára de chegar conta. Todo dia é uma coisa diferente que tem que pagar. É luz, é água, é imposto da prefeitura, é conta da Ambev, assim não dá.

Dona Marta sai do ambiente, vai para a minúscula cozinha. Seu Adenecir continua na frente de Ulisses, os dois não se comunicam. Dona Marta volta com uma colher de pau na mão.

Faz comida hoje?

Seu Ulisses não responde.

Faz comida hoje, me responde, homem de deus?

Para quem, Marta? Para que você quer fazer comida? Para jogar fora depois?

Marta volta para dentro da cozinha.


Cena 2

É noite, Seu Ulisses fecha a porta do estabelecimento. Ele bate repetidas vezes com a chave na mão e fica olhando para a porta arriada com um semblante triste. Depois de alguns instantes, ele sai do lugar. Ao lado da porta fechada, há uma placa de madeira ordinária, pintada a mão que diz: “Passo o ponto” e com o telefone embaixo.


Cena 3

Seu Ulisses carrega o freezer da loja com algumas caixas que o entregador deixou na porta. Vai até a cozinha, Dona Marta está lá lavando louça.

É a última vez que eu compro essa quantidade de cerveja. Fiz já um pedido com a metade das caixas. Tava demorando duas semanas para acabar com o estoque. Ficava tudo entulhado aqui atrás.

(...)

Ulisses, O Seu Manél veio falar contigo?

Não ele nunca mais veio depois daquele dia.

Quanto foi mesmo que ele disse que ia pagar?

Quarenta mil.

Oh, Ulisses, com quarenta mil na mão, hein... dá pra fazer uma festa...

E depois a gente vai viver de que, Marta?

Impera um silêncio. Seu Ulisses volta para o balcão. Seu Adenecir já está no seu cantinho com o copo na mão.



Cena 4

Seu Ulisses almoça sozinho na mesa de ferro no meio do salão.

Marta, tem pimenta?

Pimenta acabou.

Tem farinha, então?

Vou levar.

Demora alguns segundos e Dona Marta leva o pote de farinha. Assim que ela sai, entra no boteco três sujeitos completamente diferentes da freguesia habitual. Dois são altos, um magro e outro mais musculoso. Este tem um cabelo grande e usa óculos. O terceiro era menor e tinha uma certa calva.

Opa, tudo bem?, diz o de óculos.

Hum, resmunga Seu Ulisses com a boca cheia de feijão com farinha.

O senhor vende skol? Garrafa?

Harrã, sim, harrã.

Pra quanto ta?, pergunta o magro.

Dois e vinte.

Dois e vinte?, o menor se espanta.

É aqui mesmo que vamos ficar, o senhor tem uma mesa?

Seu Ulisses se levanta de imediato, carregando o prato nas mãos.

Não, que isso, tio? Almoça ai tranqüilo que a gente espera. Não tem pressa.

Não, sentem ai, eu ia mesmo lá para dentro.

Seu Ulisses larga o prato razoavelmente cheio na pia da cozinha e volta secando a mão na calça e limpando a boca na camisa. Abre o freezer, pega uma garrafa e a coloca em cima da mesa dos rapazes.

Traz mais uma?, pergunta o mais alto e magro para os outros. Com a confirmação de cabeça de todos, ele repete o pedido para seu Ulisses

Seu Ulisses se vira rapidamente para pegar mais uma cerveja e coloca na mesa. Dona Marta aparece na entrada da cozinha.


Cena 5

Seu Ulisses está observando os rapazes bebendo e conversando em altos tons no boteco. De repente, passa um sujeito de cabelo liso jogado na cara, os três de dentro do bar gritam para fora ao mesmo tempo.

Oh Verme!

O de cabelos lisos olha para dentro do bar e reconhece os amigos. Caminha para dentro e cumprimenta cada um.

Ta indo aonde?

To indo comer uma parada.

Pô, to com mó fome, também. Será que aqui não rola também uma comida?

Não sei, pergunta ai para o tio.

Ai, meu tio, tem alguma coisa para tirar o gosto?

Tem sim.

O que é que o senhor tem?

O que é vocês querem?

Tem aipim frito?

Aipim?

É aipim, macaxeira, mandioca...

Ah, mandioca frita, tem sim.

Ta bom aipim frito?, o cabeludo pergunta para a mesa, todos concordam, em seguida ele pede para Seu Ulisses: Me vê uma porção bem caprichada, então.

Seu Ulisses olha para Dona Marta que estava parada ao seu lado, ela entra na cozinha.

Não tem mandioca não.

Então vai comprar, mulher, ora onde é que se viu? Vai na tenda do Dílio e pega umas três. Aproveita e pega também carne seca e cebola.

Cebola a gente tem.

Então vai logo, não se demore mais.



Cena 6

Seu Ulisses coloca mais uma cerveja para os rapazes. Embaixo da mesa falta apenas duas garrafa para fechar a caixa.

Oh tio, o aipim demora para sair ainda?

Ta saindo.

A gente pediu o troço há um século.

Porra, que cara exagerado, ironiza o calvo.

Ta saindo, ta saindo.

Seu Ulisses entra na cozinha, Dona Marta está no fogão fritando. Ao seu lado, há uma bandeja com alguns aipins já prontos. Ela pega com a escumadeira e os colocam na bandeja.

Vou levar. Frita também a carne seca.

Dona Marta pega as tirinhas que já havia cortado da carne seca e as joga na mesma frigideira.

Seu Ulisses entrega o prato para os rapazes. Eles não falam nada, atacam o prato.

To fritando também uma carne seca para vocês. Vocês querem.

Pô, perfeito.

Peraí, quanto é o aipim?

O aipim?

É.

Três reais.

E a carne seca?

A carne seca é... cinco reais.

Ta, tudo bem. Pode trazer.



Cena 7

Já está de noite. Há um e meio engradado de cerveja cheios. Os garotos estão todos muito bêbados.

Vamo’embora. Vamo perder a festa de hoje.

Ta, pede a saideira e a conta.

Ai, tio, dá pra trazer a última e a conta pra gente?

Seu Ulisses sai no balcão pega a cerveja no freezer, a entrega para os sujeitos e volta para o balcão para fazer a conta.

Porra, gostei daqui. Vamo voltar amanhã?

Também gostei. A cerveja tem um preço honesto e a comida é boa.

Seu Ulisses leva a conta para eles. O mais alto e magro pega, a coloca sobre a mesa e puxa a própria carteira. Todos em seguida fazem o mesmo, sem nenhuma reclamação. Em pouco tempo, o dinheiro está sobre a mesa.

Aqui tio. Vamo voltar amanhã.

Ta.

Vamo trazer uma galera. A gente vai encher isso aqui.

Ta. Ta, pode trazer.

Até amanhã, tchau senhora

Dona Marta balança a mão de volta. Seu Ulisses pega o engradado e o coloca na cozinha. Ele está visivelmente empolgado.

Vou ligar pro Russo pra trazer cerveja.

Por que, Ulisses?

Porque os garotos acabaram com a minha toda. Tenho mais quatro caixas e meia e só. Se eles vierem mesmo amanhã, como é que eu faço? E se vierem com esse povo todo que eles tão falando que vão trazer?



Cena 8

O dia está claro. Seu Ulisses desliga o telefone em cima do balcão, ele está com um guardanapo numa mão e uma caneta na outra. Caminha para a cozinha onde está Dona Marta.

Pedi dez caixas. Acho que vai dar.

Quem deve ser esses meninos?

Num sei, Marta.

Será que eles moram por aqui? Eles poderiam morar por aqui, né? Se eles morarem por aqui seria melhor.



Cena 9

Na hora do almoço, chega a entrega de cerveja. Seu Ulisses ajuda os homens a descarregar. Um dos homens dá um tapinha nas costas de Seu Ulisses.

Ai, Seu Ulisses, fazendo pedido extra. Vai ter festa?

Não, não.

Que isso, Seu Ulisses? Nem me convida para as suas festas.

Não vai ter festa nenhuma não, Russo.

O homem sai depois que Seu Ulisses assina a nota de entrega. Seu Ulisses fica na porta do boteco com a mão na cintura olhando para ambos os lados. Fica uns quinze minutos assim depois volta para dentro do balcão.

Se esses moleques não aparecerem, eu to no prejuízo de mil real.

Mil real?

Seu Ulisses não responde. Coloca mais uma pinga para Seu Adenecir.



Cena 10

Seu Ulisses fecha a loja de noite. Dona Marta está ao lado dele. Os dois começam a caminhar para a casa.

E agora, Ulisses?

Seu Ulisses não responde. Ele anda cabisbaixo, mexendo na chave para distrair.

E agora, o que a gente vai fazer, Ulisses?

Eu não sei, Marta, eu não tenho a menor idéia. Me deixa quieto no meu canto, ta?

Os dois continuam a caminhar sem pronunciarem nenhuma palavra.



Cena 11

Seu Ulisses passa um pano sobre o balcão, na manhã seguinte. Seu Adenecir toma sua pinga no mesmo lugar de sempre. Seu Ulisses se senta no banco que ele tem dentro do balcão e num ímpeto se dirige para a mulher, dentro da cozinha.

Vou ligar para o Manél.

Dona Marta sai secando as mãos num pano de louça e apenas o observa. Não tece nenhum comentário. Seu Ulisses pega o telefone e disca alguns números.

Manél?... É Ulisses... Isso, isso, da “Flor do Bairro”... Isso... Como vai, também?... To ligando, Manél, para saber se tu ainda vem aqui ou não... Não sabe?... Não?... Vem amanhã?... Já... Não pode ser... Ta... Semana que vem, então... Ta, ta marcado, então... Um abraço.

Por que você mandou ele vir só na semana que vem?

Porque a gente tem que resolver todo o negócio nesse meio tempo.

Que negócio é esse que a gente tem que resolver?

O negócio todo, ora.

Mas ele vem aqui só para dizer se quer comprar ou não. O que é que a gente tem que resolver?

Oh, oh, Marta, não se mete nas minhas coisas não. Deixa que com o Manél eu me entendo.

Você tem cada uma...

Dona Marta volta para a cozinha, Seu Ulisses fica no balcão com o caderninho de contabilidade aberto escrevendo nele.



Cena 11

O céu está escurecendo, o céu está azulado, com alguns tons de laranja. Seu Ulisses está na porta do boteco olhando para fora. A rua é pouquíssimo movimentada. Principalmente nessa época do ano, dezembro, janeiro. Subitamente aparece na rua, três sujeitos completamente desconhecidos, vestidos de puta, da pior qualidade. Porém, o que mais chama a atenção é que eles caminham como homens. Todos têm feições masculinas e não fazem nenhum esforço para disfarça-las. Seu Ulisses, meio rindo, meio se defendendo, volta para atrás do seu balcão. Demora poucos minutos, entra um sujeito enorme com uma fralda no meio das pernas. Junto a ele, vem um cara com roupa de exército.

O senhor pode me ver uma cerveja.

Seu Ulisses sai de trás do balcão e pega a cerveja e coloca em cima da única mesa.

A gente pode ficar bebendo aqui na porta?

Claro.

O senhor tem copo de plástico, para não quebrar nenhum copo do senhor.

Tudo bem.

Seu Ulisses voltou para detrás do balcão e olhou para fora e viu várias pessoas vestidas de maneira incomum. Umas mulheres de maiô com orelhas e rabos de gatos, coelhos, cachorros. Um garoto pequeno de trança de jamaicanas, um outro com uma batina de padre, uma mulher de freira, outra de mulher-maravilha, um sujeito com camisa do chapolim, outra de enfermeira, um médico, um dentro de uma caixa enorme, um vestido com roupa de esqueleto, outra de she-ra, outro vestido de caçador, um de tenista, outra de nadadora, uma de mergulhadora. Todos entravam na birosca de Seu Ulisses e pediam uma cerveja para comprar. Seu Ulisses já não conseguia atender a todos.

Marta, vem cá, vem cá, Marta, preciso que você me ajude aqui. Me dá uma mão aqui. Liga para o Oséas e pede para ele vir para cá. Vê se ele pode trazer mais cerveja, vê se dá também.

A rua está lotada de pessoas. Não são dezenas nem centenas, a multidão aparenta ter próximo de mil pessoas. Muitas delas entrando e pedindo uma cerveja ou algo mais forte.

Tu tem caipirinha?

Dá pra fazer rabo de galo?

Aqui tio, to pagando três cervejas.

Me arranja uma gelada, por favor.

Seu Ulisses em determinado momento, por mais incrível que pareça, fica sozinho com Dona Marta.

Marta, vou tirar a placa lá de fora.

Seu Ulisses sai do boteco, quando Oséas está chegando com o seu chevete bege. O dono do bar pega a placa do lado de fora e guarda debaixo do balcão.

terça-feira, 2 de setembro de 2003

Os defensores dos bairros proibidos

Gostaria que esse texto se transformasse, no futuro, em um primeiro capítulo dum grande livro em que contarei todas as minhas memórias em detalhes. Neste escrito, entretanto, não narrarei nenhuma das minhas façanhas, nenhuma das minhas missões civilizadoras, nada que eu tenha feito. Tentarei somente introduzir o conceito que me guia, aquele me torna um ser que existe para ajudar o próximo.

Se você está me lendo, já posso afirmar sem muita margem para erros, que somos seres especiais, únicos. É uma questão de estatística. Não tenho os números de cabeça, mas entre em um sítio de um instituto de pesquisa qualquer para saber quantos entre os habitantes desse país sabem ler e escrever. O número fica ainda menor quando peneiramos para aqueles que tem o hábito de ler livros ordinários. E, quer você queira ou não, tornamo-nos a elite quando compramos livros como o meu que, com certeza, não estará no hall dos mais vendidos. Por isso, acostume-se, você é um dos poucos.

Para comprovar a tese de que estamos no cume da montanha, posso afirmar sem nem ao menos lhe conhecer que, bem provavelmente, você fez alguma faculdade, ou está em curso agora. Eu, por exemplo, fiz engenharia. Poderia ter feito medicina, direito, administração, economia, nada iria mudar muito a minha formação. Você estudou num colégio particular – eu passei quinze anos num de freiras – ou nesses públicos que tem provas semelhantes a vestibulares. Ou seja, possui um bem que a grande maioria daqueles que tem a sua nacionalidade não tem: educação. Não tenho a menor idéia do que você fez com a sua, mas eu usei a minha para servir aos meus semelhantes.

Para fazer aquilo que faço hoje em dia, não precisei de nenhum grande trauma para mudar a minha vida. Isso só existe em filmes e nos piores manuais de psicologia. Apenas observei meus arredores e decidi que do jeito que estava, não dava mais. Não houve um estopim, algo fatídico, somente um amontoado de situações que tornaram toda a convivência impossível.

Tenho esposa, duas filhas, uma casa espaçosa e confortável perto da praia, um carro, minha mulher anda com outro, uma casa na serra e outra num balneário. Lutei muito para conseguir isso tudo. Trabalho desde os dezesseis anos na firma de construção que meu pai deixou para mim. Tripliquei o seu tamanho sem nunca ter entrado num “esquema” dessas (ditas) autoridades públicas. Ganho licitações apenas com o meu suor e esforço. Pago todos os meus impostos em dia e nunca, nunca na minha vida, subornei qualquer fiscal.

Porém essas mesmas autoridades públicas resolveram ignorar cidadãos de bem, como eu ou você. Aqueles porque nosso país sobrevive, agonizantemente, devo admitir, mas sobrevive. O descaso para conosco já é endêmico e nos últimos anos tem piorado cada vez mais. Há umas duas décadas, mais ou menos, a situação ficou insustentável. Conheço dezenas, não é um ou outro, mas dezenas de amigos, trabalhadores como eu, que empregam, por suas vezes, centenas de homens nas suas empresas, e que vivem numa total situação de esquizofrenia e mania de perseguição. Tudo por causa dessa escalada da violência.

Tentei evitar a citação direta desse termo porque parece que já está muito batido e perdeu todo o seu real peso. Por isso, alegarei que estamos vivendo em algo que chamo de “barco do medo”. Tentamos navegar nosso caminho em paz, porém somos sempre interceptados por piratas que enlevam nossos bens e aterrorizam nossas famílias. Isolamo-nos, então. E, como os responsáveis pela nossa segurança não tomam nenhum tipo de atitude, achei por bem que eu, cidadão em dia com as minhas obrigações e habitante do cume dessa nossa sociedade, deveria tentar da melhor forma, resolver esse problema.

Acreditava piamente antes de começar esse ofício que não conseguiria resolver em cem por cento dos casos essas atrocidades que nos rodeiam. A minha intenção nem era essa exatamente. Queria criar algum tipo de resistência em nosso gueto, uma espécie de redoma de proteção contra esse invasor que toma as nossas moradias e impede de fazermos aquilo que queremos na hora desejada. Todavia, os resultados vêm se mostrando mais prósperos que o esperado.

Vivemos isolados do mundo não por vontade, mas por necessidade. Vivemos numa espécie de roleta-russa onde, mais cedo ou tarde, seremos os sorteados. Vivemos rodeados por essa doença, por esse câncer que come a nossa sociedade e agora chegou ao núcleo, ao centro, à parte mais nobre. Ficarmos de braços cruzados seria como assinar um atestado de óbito de toda a civilização da maneira como nós a conhecemos. Tudo a nossa volta se transformaria numa guerrilha, de maneira ainda mais aberta do que hoje. Queria, com o que eu faço, mostrar que nós não estamos sozinhos, desprotegidos, que não será fácil para eles virem aqui e tirar de uma vez só tudo o que nós tivemos tanto trabalho para construir. E acho que estamos conseguindo.

No início era só eu. Pode parecer estranho que eu tenha tomado à frente da execução da parte braçal desse projeto. Porém, não queria contar com mais ninguém naquele momento. Acreditava que quanto menos pessoas soubessem do que acontecia, menor era a possibilidade de termos problemas. Por isso, nem para a minha mulher contei. Devo admitir, também, que o contato com o perigo era algo que me fascinava e foi ponto decisivo nessa atitude de atuar sozinho. Hoje, somos uma rede, pequena tenho certeza, de doze pessoas, sendo dez homens e duas mulheres que funciona eficientemente, de maneira constante e sem periodicidade. Todos pertencem às melhores famílias, com tradições, todos como eu e você, habitantes do topo.

Porém, mesmo respeitando o nosso código de sigilo, era inevitável que, com o tempo, soubessem das nossas atividades. O que mais me impressionou, entretanto, nesses anos de ações, foi exatamente a conivência da polícia para com nosso grupo. Nunca houve nenhuma investigação na nossa vizinhança, apesar de alguns pobres coitados que sempre berram pelos direitos dos inimigos. Esperneiam como se nós não tivéssemos defendendo os direitos deles também. Os casos são arquivados, ou simplesmente esquecidos. Nenhum dos nossos foi importunado nas suas missões e – o melhor – mantemos um relacionamento altamente produtivo com eles. O que, aliás, mostra que existe ainda o bom senso dentro daquela corporação.

Até o governador tem se aproveitado de nossos trabalhos. Vocês devem ter percebido que é constante a presença dele nos meios de comunicação para afirmar que nos nossos bairros, o índice de criminalidade é tão baixo quanto em países desenvolvidos. Obviamente nunca contou o real motivo disso e o relaciona a uma suspeita eficiência da polícia. Ótimo para nós.

Outro fator de interesse é o insignificante número de reclamações por desaparecimento, ou coisa parecida, nos órgãos competentes. Eles simplesmente somem e ninguém dá falta. O que nos leva a crer que o nosso trabalho é aceito e era necessário para a grande maioria dos nossos vizinhos e conta com o baixíssimo número de insatisfeitos. Porém, qual serviço que agrada a todos?

Hoje já criamos uma certa respeitabilidade. Os nossos bairros não sofrem tanto quanto antigamente, é perceptível. Há ainda casos isolados e imprevisíveis que fogem de nossa alçada, como os loucos de dentro da nossa própria vizinhança que praticam atos delinqüentes. Mas estamos estudando formas de resolver esses problemas também.

Mantemos, assim, operações de rotina e é cada vez mais raro termos que agir prontamente. Tentamos conservar o que é nosso para que nossos filhos e netos consigam desfrutar de toda a maravilha dos nossos bairros tranqüilamente, exatamente como era antigamente.

Eles estão aprendendo que devem viver bem longe daqui, nas suas casas, que se vierem para cá, não terão a moleza que existia antes. Hoje em dia, eles já sabem que há uma instituição muito mais organizada que eles e que existe apenas para proteger os nossos iguais. O recado está dado.