domingo, 25 de julho de 2004

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Nem Armando, nem Sandra acreditaram quando souberam numa ligação no meio da noite que seu único filho havia morrido. “Acidente de carro”, disse a irreconhecível voz ao telefone. O garoto não era desses que correm ao dirigir, pensaram ambos em uníssono, e se soubessem desse detalhe, com certeza não se assustariam. Anos de vida dedicado ao esporte, disciplinado, ótimo aluno, recém-aprovado na faculdade, todas as caminhadas mal iniciadas. “Por quê?”, pensaram juntos e então pararam de pensar.

Foram diretos para o hospital com esperanças infundadas. Ambos médicos, não queriam agora crer na razão, desejavam o filho de volta e reclamavam às suas maneiras. Sandra sem atitude, sem ação, desmoronava no ombro do marido. Armando querendo vê-lo para saber, para ter a certeza, um tanto masoquista, um tanto desesperado, de que era ele mesmo que estava lá, inerte, finito.

No carro havia mais quatro garotos e todos resistiram. Só o filho deles, aquele que trataram com os cuidados de único. Como se fosse uma forma de piorar ainda mais o que eles sentiam, como um contraste. A cada palavra dita pelos sobreviventes, a cada movimento, eles lembrariam que o filho não poderia mais ficar com eles e fazer tais banalidades. E eles só queriam ser frívolos com o garoto.

Sempre deram presentes caros, viagens para fora do país, bancaram sonhos impossíveis. E o garoto não parecia ser capaz de... dessa maneira tão estúpida, por que agora?, por que o meu filho?, por que ele?, não fazia mal a ninguém, era tão bom o meu filho...

Um longo tempo passou e ambos não conseguiram desviar suas atenções para outros assuntos. A vida findara-se ali. Sandra, principalmente ela, nem conseguia concatenar pensamentos. Negava-se a continuar: acordava porque a luz insistia em entrar pelas frestas das cortinas, mas não queria sair da cama. Armando tentou voltar a rotina com o intuito de admitir para si a realidade. Mas, não a agüentava. Alguns dias, quando chegava em casa, passava pelo quarto do filho e ao ver todos os seus objetos intactos, da maneira como ele havia deixado, era a sua vez de despencar. Trancava-se dentro e costumava pegar no sono ali.

“O que atrapalha Sandra é não ter nenhum tipo de religião”, confessava Armando para os mais íntimos. Nunca perguntavam a ele como se sentia porque parecia que ele lidava um pouco melhor com o absurdo. Na verdade ele ansiava que perguntassem a ele para poder demonstrar que também sofria, que também não acreditava mais na razão, que não era justo, como o único filho deles morre antes deles? Tinham feito tantos planos para ele, não era justo. Não era justo, não era justo, e eles nunca perguntavam para ele e ele ficava sozinho, dentro de si, guardando, afundando o que sentia, empurrando para mais abaixo, escondendo para não encontrar mais, não queria mais, era inevitável, não era possível, mas não havia um motivo, isso que mais o chocava. Ele não entendia. Ninguém entendia, não tinha como entender, nem havia compreensão possível.

O tempo parecia indiferente para ambos. Sandra desistiu do resto da vida e se trancou. Tornou-se dependente do marido para tudo e não gostava de sair de casa. Dizia sentir medo, um pânico que não sabia a origem e como se manifestava. Apenas embotava sua visão e nada mais funcionava, era impossível, não se via mais, era branco, vazio, nublado, embaçado. Queria ficar dentro de casa onde se sentia segura, porque lá ela sabia onde pisava, quem ela era, como se comportar. Não queria mais ver pessoas, não mais, nunca mais.

Armando não percebeu disso porque, da sua maneira, ele também se distanciava de tudo a sua volta. Os amigos não sabiam como se aproximar. Iam visitá-los, sim, mas era tudo muito estranho: Sandra, sempre sentada, nunca conversa, ficava quieta, os olhos vidrados no ar em frente. Sugeriram procurar ajuda, mas Sandra não queria ser resgatada, ela ansiava por algo que não havia como existir, não tinha sentido esperar pelo que ela esperava e por isso ninguém podia ajudá-la. Sempre que começavam esse assunto, ela balançava a cabeça de maneira desordenada e tentava tapar os ouvidos; e se insistissem ela se levantava e ia para o quarto distante daquelas vozes. Armando não mais a enxergava, não mais sabia de nada além dele mesmo. E tinha dificuldades em se organizar. Não conseguia. Falavam com ele para ajudar Sandra e ele pergunta o porquê e por quê?, por quê? Ninguém conseguia aproximar-se de ambos.

Os dois se isolaram, não mais se comunicavam. Nem como antes, nem de qualquer outra forma. Entretanto, a simples presença física de um ao lado do outro era a única maneira de manter-se ainda com os sentidos ligados. Se fossem sozinhos, ou se não vivessem mais juntos, estariam ainda mais prostrados e, talvez, irrecuperáveis. Mesmo com esse pequeno fio de realidade ainda ligado, os amigos foram rareando, desistindo, perdendo o contato. Era Sandra para Armando e Armando para Sandra.

A cada ano, quando se aproximava a data, ambos decidiam viajar para a casa na serra. Ficavam um mês inteiro sozinhos, sem saber nada do lado de fora da casa, nem, ao menos, com vontade de tal. E um pouco antes do quinto ano aconteceu o seguinte:

Decidiram não viajar. Sandra estava pior em seu pânico. Há dois meses não via a cor das folhas das árvores. Vivia com o mesmo pijama de mangas longas, não importava o calor lá fora. Dentro da casa sempre era frio. Na semana do aniversário, Armando não foi trabalhar em nenhum dia. Ficavam em cômodos separados, passaram dias sem se ver. O dia cairia uma quarta, exatamente como foi da primeira vez. Era nova essa repetição e eles estavam um pouco mais assustados que o de costume, até a véspera.

No dia, surpreendentemente, ambos acordaram mais dispostos que o diário. Foram tomar café em silêncio e depois decidiram ficar juntos na cama, assistindo televisão. Era algo inédito para os dois. Parecia que tinham feito um acordo sem palavras e aceitaram mesmo antes de saberem das condições. Apenas queriam ter onde se escorarem.

A noite caiu e uma palpitação invadiu o peito de Sandra que automaticamente segurou e apertou mais forte a mão de Armando. Armando sentiu esse toque mais forte e respondeu acariciando as costas das mãos dela. Não perceberam quando se olharam nos olhos e estavam sorrindo. Há quantos anos não sorriam?, quase se perguntaram. Sentiram que eram mais que marido e mulher, sentiram que existiam com um motivo mais que o ser simplesmente, porque queriam viver e porque era necessário para o outro ao lado. Eles não eram mais singulares, viviam porque tinham um dever um com o outro, porque era necessário estarem juntos, porque era a única forma possível, porque tinha que ser assim. Eles precisavam ter o outro para sustentar, necessitavam dessa obrigação para continuar. Era bom ter esse comprometimento, sentiam-se úteis, mesmo que fosse algo tão pequeno, tão cotidiano, algo tão sem palavras, sensitivo, tão distante da razão.

Então, aconteceu algo que eles não mais se perguntaram o motivo. O noticiário mostrou um acidente, exatamente igual ao do seu filho, no mesmo lugar, com jovens da mesma idade, e apenas com um óbito. O repórter confirmava que haviam sido  transportados para o mesmo hospital. Sandra e Armando já não olhavam para a tv, e sim um para o outro e não viam mais nada. E fizeram juntos: levantaram-se em direção ao hospital.

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