terça-feira, 20 de julho de 2004

Milagres
 
Creio que esta história apareceu num programa dominical na tv. Daqueles que se vendem como jornalísticos e, no mínimo, são sensacionalistas. Toda a trama – quase um roteiro cinematográfico – me pareceu fenomenal. Por sorte não a assisti, e tudo o que sei, foi-me informado na segunda de manhã, pela boca de vários outrem. Então, não espere qualquer fidelidade aos fatos. Pelo contrário, nessas transmissões, o cerne de toda a mensagem pode – e creio que foi – modificada de maneira definitiva. Por isso até assumirei um lado mais “romanceado”, se é que possuo tal talento.
 
Tudo começa com uma imagem antiga de Maria (nome mais apropriado não há), um super8 velho com as cores saturadas, o vermelho escorrendo, os pulinhos típicos dos filmes antigos e que se deve aos dezoito quadros por segundo, ela caminha por um gramado, há uma mesa onde se senta. Comum. Talvez o único detalhe que foge do cotidiano é o fato dela estar grávida de poucos meses, em contraposição a uma expressão de desconforto. Talvez por estar sendo filmada, podemos pensar num primeiro minuto. Porém, ela, em nenhum momento foge das lentes, apenas está insatisfeita com algo. A informação que me passa é a de que ela quer ser alegre, leve, quer flutuar, mas algo a prende ao solo, a remete a uma certeza que não há como ser adiada.
 
A matéria se desenvolve e descobrimos que ela foi uma das primeiras mulheres brasileiras a fazerem ultra-sonografia de alta precisão. Teve essa possibilidade porque seu pai era um médico influente. Era o primeiro neto de sua caçula e de um casamento que ele apoiava incondicionalmente. Novamente aparece Maria com uma expressão carregada (agora em imagens de arquivo da própria emissora): é uma sala de consultório comum. Maria sentada na mesa, ao lado, seu marido, em pé, o pai. Do outro lado da mesa, o obstetra. Este segura um papel, Maria entrelaça as mãos com as do marido. De repente, cai num choro incontrolável. A criança é anencéfalo e não resistirá assim que extirparem o seu contato com a mãe. "100% dos casos vão evoluir para a morte", diz o médico, sem nenhuma delicadeza ao tratar o assunto. E a matéria tem um intervalo aqui.
 
Volta para a casa de Maria com ela: “a vida cresce dentro de mim, a barriga já aparecendo, e anunciam a morte de meu bebê”. Maria decide se interar sobre a legislação corrente e descobre que não há nada nenhum mecanismo legal que a ampare nesse caso. De acordo com as leis, ela deveria deixar a criança crescer, se formar completamente e apenas esperar pelo seu óbito.
 
A reportagem não diz sobre o que será escrito agora. Tudo será um pouco de suposição misturado com informações não oficiais. Creio bastante que houve vários incentivos para que Maria procurasse clínicas especializadas em tratar desse tipo de problema. Contudo, há um detalhe que não foi dito até o exato momento. Toda a família de Maria era de origem portuguesa e excessivamente católica. Um dos que me contaram a história disse conhecer um primo distante do marido de Maria, e sabia alguns pormenores que não foram apresentados na tv. Maria foi se consultar com um padre, amigo de seu pai. Ele lhe informa ser possível que ela viesse a sofrer, que tudo até poderia se transformar num drama, sabendo que “gera um filho que não tem condições de sobreviver”, para concluir num tom professoral, "mas o fato de a mãe gerar um filho anencéfalo não justifica que nós possamos tirar a vida desse filho para poupar, eventualmente, o sofrimento dessa mãe" (essas últimas declarações são mostradas numa entrevista, já com imagens bem recentes, por uma Maria surpreendentemente feliz e tranqüila).
 
A reportagem volta demonstrando que Maria, sem outra opção válida, terá o bebê. Conforme os meses vão se acumulando, ela se torna uma pessoa doente, quieta e pelos cantos. Raramente sai de casa, as olheiras se acumulam. Esse meu informante especial me segredou que o padre lhe mandou numa conversa – não necessariamente na mesma – confiar em deus que ele irá resolver tudo. “Não há caminho errado porque tudo já está traçado. Devemos apenas nos acostumar com todas as barreiras que eventualmente aparecem”. E concluiu quase profético, quase dúbio: “e lembre-se: deus confere um, e apenas um, milagre na vida de todos aqueles que acreditarem nele”.
 
Maria se transforma numa beata com pouco mais de vinte anos. Só a vemos envolta em chalés escuros, com roupas cumpridas, dentro de templos. Na reportagem essa mutação é bastante estranha, já que não explicam detalhadamente o motivo dela ter variado dessa forma. Dizem que foi apenas porque ela era católica e se agarrara na religião como à salvação. Se soubessem que Maria estava diretamente ligada à vontade que seu milagre – por mais absurdo que possa parecer – acontecesse, talvez não ignorassem dessa forma tal fenômeno. Apenas frisaram, repetindo o clichê de que a “fé move montanhas”. Quando uma das contadoras dessa história me disse isso (e por coincidência, foi a primeira a fazê-lo), pensei que fosse apenas por mal-gosto pessoal dela. Mas, depois, percebi que todas as mulheres que vinham até mim com essa história repetiam a mesma frase. Vi que era um problema de origens.
 
E, então, a primeira maravilha acontece: o bebê nasce e vive. Quando ouvi, também não acreditei. Algumas mulheres estavam com os olhos cheios d’água nesse momento. Entretanto, o que é ainda mais inacreditável vem agora: não só veio ao mundo, como cresceu e até hoje está andando por aí. Tem vinte e poucos anos, mais ou menos a mesma idade de sua mãe, quando o teve. E, ela, de tão agradecida por esse prodígio, conseguiu convencer seu filho a seguir a carreira clerical, em agradecimento. Hoje ele é um padre importante em sua paróquia.
 
A última parte da reportagem o mostra, dentro de sua igreja, discursando da maneira mais tradicional possível para dezenas de pessoas, todos os finais de semana (acho que reuniram algumas pessoas a mais que o normal quando disseram que seria transmitido pela tv). No seu sermão prega para as pessoas nunca duvidarem de um milagre, pois ele mesmo era fruto de um.
 
Suas posições (fizeram algumas perguntas para ele numa rápida entrevista), talvez por ser resultado direto de um dos dogmas mais enraizados e antigos da igreja católica, são excessivamente conservadores. Era contra a renovação, qualquer tipo de liberalidade, contra métodos anticoncepcionais e, óbvio, contra o aborto. Nada mais justo vindo de uma personagem inacreditável como essa.

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