segunda-feira, 9 de agosto de 2004

Email para uma grande amiga ou "Stomp é o caralho"

minha querida,

assisti ao meu primeiro show do Cordel do Fogo Encantado e lembrei bastante de vc.

Confesso que quando ouvi pela primeira vez o cd, lá em casa, não fiquei muito impressionado. Para mim, não passava de mais uma banda regional que seria esquecida logo em seguida. Criei esse preconceito e quando me disseram que eles tocariam depois do Mombojó (outra banda de Pernambuco, essa sim, gostei já ao ouvir pela primeira vez o som dos garotos - moleques mesmo, já que eles têm de 17 a 22 anos) perguntei porque não era o contrário, o Cordel abrindo para o Mombojó?

Essa minha idéia ainda ficou mais forte quando presenciei o show dos meninos, que foi bem legal, apesar deles terem ficado visivelmente intimidados com a platéia (foi no Circo Voador, estava lotado e as pessoas estavam muito empolgadas). Ao ponto de, ao final, na última música, os garotos terem tocado com tanta vontade, com tanto sangue que erraram algumas coisinhas, o que só serviu para eu ficar mais fã deles.

Virei para o lado e comentei que seria difícil, depois disso tudo, que o Cordel fizesse algo melhor. Ah, quanto errado estava eu... Houve um intervalo de mais ou menos 30 minutos e eu na platéia, meio cansado, achava que seria um showzinho morno, dentro dos planos, comum. hum...

Quando os dois negões se ajoelharam antes de subirem aos atabaques e se benzeram, eu comecei a suspeitar que eles não podiam ser coisa terrena.

E eu boquiabri-me para só conseguir fechar a boca depois de quarenta minutos de porradaria no som. Parecia show de rock pesado onde as pessoas pulam em roda, todas hipnotizadas, envolvidas pelo batuque, pelo grave dos tambores, pelo poder dos surdos, pelas ondulações, por todo o teatro, pelas luzes, pelas poesias de cordel, pelo cantor, ator e qualquer coisa não-terrena Lirinha. O cara tem algum tipo de pacto... não: todos têm ligação direta com alguma entidade superior (isso, claro, se eu acreditasse nisso). Não era música, não era dança, não era só arte, era religioso, era algo indescritível, superior a nós, algo impossível de se decifrar, que foge dos detalhes, fica longe do racional, que não pode ser colocado nunca em palavras (arte tão próxima do cerebral).

A cada música o povo todo respondia, ou cantando as músicas, ou pulando ao som da percussão, ou apenas deixando ser levado por toda a vibração. Parecia que eles haviam transformado o ar em um meio líquido e o bombardeavam com quilos de ondas sonoras que não nos permitiam a imobilidade (talvez só no meu caso que sou doente do pé. Uma boa imagem para representar-me: um gringo num terreno de macumba).

Sei que vi algo muito maior que eu. Me senti pequeno, me senti humilde, me senti maravilhado.

Ao final do show, todos da banda estavam muito felizes, o guitarrista bate no peito e no braço e olha para a platéia demonstrando que ele acreditava que a platéia tinha sangue, tinha raça, era uma demonstração de excepcionalidade; e eu percebi que meus olhos se molhavam, porque tinha feito parte daquele algo maior. Apesar de eu ser insignificante naquilo tudo, me sentia feliz por ter presenciado momento tão mágico. A minha memória não deve esquecer de nada disso.

Acho que vc iria gostar do show, por isso o email tão detalhado para quem, um dia, me apresentou a banda.

um beijo e saudades,

r.

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