domingo, 29 de agosto de 2004

O pergaminho

Talvez esta história demonstre que os homens confluem para o mesmo destino. Já foi dito por verdadeiros autores que a Humanidade é a História de um homem só e a repetição faz-se necessária apenas por alegoria.

Por isso, a origem e toda a trajetória da personagem principal dessa ficção – porque tudo o que foi e é escrito será um dia, mesmo contra a sua própria intenção, inverdade –, um pergaminho de nacionalidade vacilante ou até inexistente, até seu antagonista, Horácio Castro, dono de um sebo de livros usados localizado num bairro central, transversal de uma rua larga, num beco quieto e sempre vazio, funciona apenas como um exemplo dessas coincidências inexplicáveis que florescem por toda a existência, transformando–a num intrincado jogo onde não há rigidez quanto às razões.

O portador do inusitado papel era um sujeito com forte sotaque árabe, apesar do português razoável para um estrangeiro; nariz redondo, bigode fino, boina cinza e cabelos já prateados pela idade; bastante alto, até um pouco encurvado, quase corcunda. Pareceu a Horácio, quando adentrou a loja, que o homem tinha a intenção de se camuflar, como se quisesse se esconder de alguém. Era uma impressão de difícil comprovação, mesmo tácita, porque nada nos gestos do homem demonstrava isso. Não possuía nenhum dos cacoetes que o cinema e a literatura nos acostumou. Apenas era soturno demais: desaparecia quando não observado diretamente. Aproximou-se do balcão sem que Castro o percebesse, foi extremamente polido, porém não se identificou de imediato. Contou-lhe apenas que detinha um precioso tesouro oriundo de sua região de origem. Horácio não demonstrou empolgação neste momento, porém sobre o homem que lhe era exótico em demasia, não conseguia desviar os olhos. As outras pessoas, então, inexistiam porque pareciam pertencer a alguma outra dimensão. O homem pediu reserva, pois nem todos poderiam avistar o que ele trazia, não entenderiam e, o pior, poderiam ficar aprisionadas ao livro de maneira irreversível. Horácio teve ânsia de rir, mas conteve-se antes do sorriso. Nunca presenciara tamanho zelo, ou mesmo formalidade quanto a um livro. Achou absurdo, exótico, quase religioso. No entanto, mesmo que não percebesse, esta atitude combinava com a figura daquele homem. Pediu-lhe para mostrar-lhe o que era, qual sagrado livro ele possuía. O homem ficou um instante imóvel com o semblante ainda mais rígido mirando diretamente os olhos de Horácio; este fica um pouco constrangido por essa eternidade de silêncio. O estrangeiro quebra o vazio falando: "a minha escolha não foi sem motivo". Horácio acompanha as palavras com um balançar afirmativo e lento da cabeça quase boquiaberto, o outro continua: "se foste o escolhido, foste porque havia uma razão, mesmo distante de nossas percepções terrenas". O livreiro tenta falar algo: "sim, mas...", e é interrompido: "Contudo, creio ter cometido um engano". Vira-se e caminha apressadamente para fora da loja. Horácio ainda grita para que o outro o aguarde, já que, para alcançá-lo deve rodear o balcão que os separava. Somente o atingiu quando está com os dois pés fora da loja. "Espere", repete Horácio, "Entenda, por favor, que todo o nosso encontro fugiu um pouco do meu controle... Sou apenas um livreiro que atende aos leitores costumeiros há mais de quarenta anos. Compro os mesmo livros com os mesmos vendedores desde que esta loja abriu. Perdoe-me por minha indiscrição". Horácio não poderia perder tal personagem sem ao menos saber o que ele carregava. O homem novamente encarou vividamente o castanho dos olhos de Horácio que não titubeou. Não saberemos, mas a segurança nas atitudes de Horácio pode ter sido o que gerou o retorno do desconfiado homem. Antes que este repetisse o pedido por reserva, Horácio sugeriu que fossem para um lugar mais quieto, onde ele normalmente fazia a contabilidade do negócio.

Só neste momento o homem se apresentou: chamava-se Mohammed Ali Aziz e era natural da região entre o Tigre e o Eufrates, como disse no momento. Sua história havia sido guiada para e pelo pergaminho que agora estava em seu poder. Vivera para encontrá-lo, pois cria que nele estava o todo e o completo sentido da existência, e quando esteve de posse do sagrado escrito, não mais pôde construir um só pensamento que não detinha a imagem daquele pedaço de couro antiqüíssimo com escritas indecifráveis. Se agora o passava adiante era porque havia cumprido sua missão. Ele constituíra seu pedaço dentro da História, não mais necessitava ficar com o pergaminho, além de motivos individuais, do gosto pessoal ou do egoísmo.
Horácio escutava a tudo bastante incrédulo; por outro lado, sentia uma curiosidade tomando formas cada vez mais nítidas dentro de si. Por fim, pediu para observar tal pergaminho. Mohammed respondeu-lhe que antes era necessário explicar-lhe sua biografia pregressa, para que ele soubesse o possível sobre o mistério e pudesse acrescentar, um suspiro que fosse, em sua completitude.

O oriental continua: "Não se conhece como apareceu sobre a Terra. Sabe-se apenas que está em poder dos homens há várias e várias gerações. Como o consegui é de pouca importância. Somente lhe direi que este também é o motivo de ter emigrado para este país tão estranho". Neste momento deu uma pausa para avaliar como esta informação era recebida pelo interlocutor; percebendo a indiferença como resposta, logo continuou: "Muitos já tentaram traduzir suas palavras. Alguns afirmam que o máximo que atingiram foram suaves descrições. Outros argumentam que foi encontrado primeiramente perto dos Bálcãs, muito antes do nascimento daquele que vocês consideram como deus, e nós como um dos sete profetas. Há ainda os que o situam na Índia, muitos séculos antes. Proliferam indiscriminadamente argumentos que as tentativas de interpretação do pequeno texto criaram todos os livros santos, da Bíblia dos cristãos ao Torá dos hebraicos; do Alcorão do nosso povo ao Gita dos hindus; dos livros gregos aos mais religiosos". Horácio já não mais cria na razão. Estava de tal maneira estupefato pelas palavras do muçulmano que seu senso crítico as aceitava como a uma leitura prazerosa.

"Não há algo razoável, ou pelo menos que os cristãos chamam de racional para eu lhe entregar o pergaminho", o homem falava, "soube, por Alá, que era para fazer isto e aqui estou para cumprir minha missão". Deu uma pausa e mudou o argumento que desenvolvia, em tom cresente: "há ainda aqueles que dizem ter entendido completamente o texto, mas, então, já não eram mortais como nós. Eu talvez não consiga explicar porque em minha religião não há meios que exemplifiquem tal fato: era como se atingissem o paraíso ainda vivos".

Ao ouvir a última frase, foi como Horácio acordasse. Toda a narrativa era demasiadamente irreal para se prestar a atenção. Percebendo o desinteresse repentino do ouvinte, Mohammed decidiu encurtar-se um pouco: "Creio ter me alongado. Sugiro apenas uma última prova de confiança", Horácio assentiu com a cabeça para que o oriental prosseguisse, "Deixar-te-ei sozinho com a peça por alguns instantes para que possa saciar toda a sua curiosidade". Entregou-lhe um canudo aveludado parecido com um diploma universitário e levantou-se. "Nunca, em hipótese alguma, mostre a alguém, mesmo que lhe peçam, mesmo que pareça o correto", disse secretamente para em seguida concluir: "Quando estiver pronto, me procure, estarei do lado de fora da sala". Horácio, como se fosse estritamente necessário, esperou a saída por completo do estrangeiro e então reparou na peça que estava em suas mãos. Abriu o recipiente e retirou o pedaço em cor amarelo-escuro, até marrom em alguns detalhes. Era um pouco menor que uma folha comum de cadernos grandes e detinha apenas uma série de sinais que não fazia o menor sentido para o leitor e cobriam toda a sua superfície. Não pareciam pertencer ao sistema alfabético eslavo, ou o grego, ou o nórdico, o árabe, o japonês, o chinês, o latino, o coreano, o hindu, o malaio, o indonésio ou qualquer outro que ele tinha conhecimento da existência. Não lembrou-lhe os hieróglifos nem outro tipo de escrita onde os caracteres não obedecem a regras imóveis, podendo uma estrela ser interpretada como brilho, grandeza, a própria estrela e também todos os seus antônimos. Em nenhum momento pareceu para Horácio que tal pedaço de couro tinha uma origem tão nobre, que havia passado por entes tão poderosos. Para ele, eram somente rabiscos antigos, muito antigos. Só isto já lhe despertara alguma curiosidade, nada extraordinária. Olhou por último sem a tentativa de entender e sentiu um conforto indescritível e sorriu. Levantou os olhos assustados e não soube explicar a sua atitude. Em ato contínuo, enrolou cuidadosamente o pergaminho e devolveu à sua origem. Levantou-se e saiu do ambiente.

Do lado de fora, uma primeira surpresa: o homem não se encontrava mais. Perguntou para um dos balconistas, e depois outro, e as respostas foram unânimes: não haviam visto sujeito com tais características naquele dia, nem nunca anteriormente. Horácio ainda teve ânsia de pensar que poderia ser apenas algum tipo de brincadeira, insistiu com alguns compradores que se espalhavam pelo saguão entre as estantes, e nenhum deles apresentou diferenças quanto à explanação. O livreiro saiu da loja, andou até a rua movimentada e lá desistiu completamente de continuar a procura quando reparou na impossibilidade de achar alguém naquele turbilhão de gente andando apressadamente em ambos os sentidos. Ainda teve o impulso de duvidar da realidade, suspeitando que poderia estar sonhando, mesmo que não fosse dado a esses estratagemas, mas o canudo na mão desfazia qualquer esperança nesse sentido.



Nos primeiros dias que se passaram, o dono da livraria não deu nenhum valor ao pergaminho, que ficou dentro da gaveta no seu escritório. Sentia uma espécie de medo encoberto, que ele próprio não identificaria. Entretanto, não comentou com ninguém sobre tal fenômeno, com medo de suspeitas sobre sua razão. Viveu cotidianamente.

Contudo, se pegava, constantemente, pensando sobre aquele misterioso pedaço de couro. Era por demais absurdo logo ele estar em posse de algo tão incomum. No final da primeira semana, se trancou no cubículo e foi observar aquelas "letras" na tentativa vã de entendê-las. Alguns segundos passando os olhos de um lado para o outro, procurando alguma lógica de interpretação, algum tipo de sentido, direção ou até sistema organizacional e nada. Levantou-se e pediu a um dos atendentes que buscasse para ele todos os livros de lingüística que a loja tivesse. Voltou-se para analisar os traços que quase eram desenhos, e então o sujeito trouxe vários dentro de um carrinho pequeno. Carregou, ele mesmo, os livros um a um, para cima de sua mesa. No início, os abria na procura da identificação do sistema ou alfabeto, procurava uma origem em comum, algo que pudesse demonstrar uma evolução, um detalhe que sinalizasse um resultado, semelhanças, traços familiares... Nenhum resultado. Quando a mpulsividade foi dando lugar a uma decepção, preferiu estudar com mais cuidado o assunto. Foram dias, semanas, meses lendo sobre a transformação de alfabetos, teorias sobre as regras da evolução, as origens etimológicas em comum de palavras com sentidos opostos etc. Tudo sempre permeado de admirações diárias do pergaminho. Sua rotina se modificou de tal forma que quase não aparecia para o público. Ficava tanto de seu tempo enfurnado dentro do escritório, lendo e tentando achar alguma significação que até os menos atentos repararam na mudança de postura do livreiro. Seguia proposições, adotava comportamentos, achava que tinha alcançado algum resultado e, em algum momento, tudo desmoronava. Nada fazia sentido. "São apenas traços sem sentidos", repetia para si mesmo, nos momentos menos esperançosos, "não há o que concluir porque isso é impossível". Entretanto, apesar da desempolgação, não desistia de continuar na tentativa de entendimento.

Um dia, descobriu, num dos poucos momentos que ficou do lado de fora de sua caserna, que um dos freqüentadores de sua livraria era um senhor estudioso de línguas. Começaram a papear e Horácio rapidamente perguntou ao outro se conhecia as escritas mais distintas dos idiomas menos conhecidos; o outro, num gesto de humildade, disse que tentava estudar sobre, mas que nunca se pode afirmar com precisão sobre o saber infinito. Castro pediu um minuto para o lingüista e foi para dentro do seu escritório. Num papel ordinário, copiou alguma das frases e o trouxe de volta; mostrou-lhe, reservadamente, e pediu a opinião dele. O homem, poucos cabelos e brancos, também de bigodes, óculos de lentes grossas, pegou o papel comum nas mãos e afirmou peremptoriamente que nunca havia visto tal coisa. Juntou a isso, um pedido para que ele, o professor, observasse pessoalmente e sem intermediários a origem daqueles sinais, pois ficara interessadíssimo em algo tão sui generis. Horácio respondeu-lhe que não era possível, porque havia prometido nunca mostrar o pergaminho para ninguém. O senhor não insistiu; apenas solicitou o pedaço de papel comum para que pudesse levar para estudar um pouco mais sobre. Horácio não pestanejou e entregou-lhe.

O tempo corria novamente sem que fosse perceptível para o livreiro. Sua rotina, que tinha sido interrompida somente neste dia, voltou à mesma. Lia sobre o assunto, se martirizava porque não alcançava nenhum resultado, voltava a se inteirar, novamente sentia a impossibilidade. Sem perceber, um ano se acumulou. E logo outro. Aquele cotidiano já havia se incorporado por completo à sua vida. Nunca mais vira o muçulmano, nem o professor. Agora, anos de distância os separando deles, lembrava de ambos como antagônicos, porém que aparentavam uma complementaridade, como se um pudesse existir apenas na presença do outro.

Horácio já estudava automaticamente sobre línguas. Já sabia de cor todos os caracteres do pergaminho. Não era mais dolorosa a leitura, não mais sentia uma desesperança, um sentimento ruim ao não alcançar o infinito objetivo. Pelo contrário, era o oposto. Gostava de ficar imaginando alguma tradução possível para o pergaminho e se divertia com as tentativas. Era prazeroso passar horas somente perfilando cada caractere. Tinha compreendido, na última temporada, assuntos tão diversos e tão antagônicos que nem percebia.

A livraria seguia como sempre foi: quase vazia, com os mesmos compradores, as mesmas pessoas, como um retrato do passado que se repete, que sempre retorna. Castro havia incorporado essa sua nova função, o que não atrapalhava em nada suas funções normais de administrador do pequeno negócio. Apenas cumpria uma obrigação diária com o antigo pedaço de couro, sempre nos mesmos horários, como uma reza.

Sem muita explicação, num momento que tenderia a se confundir com outro qualquer, tamanha era a sua falta de originalidade, Horácio tinha em mãos o pergaminho e simplesmente o entendeu. Não havia o que traduzir porque aquelas palavras não eram palavras como estamos acostumados, quiçá conceitos abstratos que existem para a interpretação. Eram pedaços de uma grande figura, de um rosto, da imagem, de deus, de algo inominável. Castro sentiu-se perdido no espaço e no tempo, díspare completamente das descrições; não sentia a própria existência e duvidou que algo pudesse realmente existir. Uma plenitude o preencheu e tudo ganhou um sentido próximo a ele, entretanto inexplicável pela falta de porquês que podem existir. Não mais poderia existir o bem nem o mal, a felicidade ou simplesmente a beleza, não tinha nenhum propósito o ideal, o triste; o erro e o acerto se fundiam. Horácio se sentiu com uma superioridade humilde, com a chave para todos os conceitos, como se alcançasse o limite do ser humano, o máximo que se pode chegar, que se almeja durante toda a existência, um fim que se caminha para, a estabilidade perpétua, ele e o pergaminho eterno.

O livreiro levantou-se de sua mesa, nem com calma nem apressadamente, porque era unicamente o absoluto, não mais detinha qualificações, e caminhou no mesmo tom para fora da sala. Tudo possuía outra luz, outros coloridos, outros significados, mesmo sendo os mesmos. Ali estava um freqüentador assíduo de sua loja; ao mesmo tempo, este homem era o muçulmano e também o professor de lingüística e todos os homens do mundo. Ao seu lado, Castro diz frases pequenas, porém de clarezas inatacáveis. Conta-lhe que possuía um livro que ele ansiava encontrar, o outro, o homem que se transformara numa representação do arquétipo absoluto, ávido pela informação, pergunta-lhe qual seria o livro; Castro entrega-lhe o pergaminho, que para o homem não possui a mesma imagem, ele o entende diferentemente e se congela num instante que se torna perene. Havia cumprido a sua História. Era a vez do outro.

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