quarta-feira, 6 de outubro de 2004

Agora, naquela noite, ontem

Apenas no meio da noite percebi realmente o buraco negro em que você me deixou caindo. Já estava fora de casa há horas, com o intuito de me nublar, para que nenhuma lembrança caseira me tentasse. Queria desconectar todos os cabos que ligam a minha reação ao meu pensamento ou à minha memória. Transformar-me num zumbi que vagueia até o próximo sol, ou que fica estático no meio de uma pista lotada de desconhecidos, segurando um copo de qualquer coisa forte, esbarrando nas pessoas, olhos fechados, tentando se mover ao som genérico que aporta nos ouvidos. Precisava de anestésicos, algo que me suspendesse do chão, que não fizesse suportar a crueza, pois agora, naquela noite, ontem, eu não agüentaria.

E todo o planejado cumpria-se à risca. Acompanhava-me um camarada que encontrara duas amigas e eles todos conversavam animadamente enquanto eu me mantinha a uma distância segura, longe de qualquer interação. A minha saliva se tornava pastosa e eu não conseguia concatenar sinapses. Sentia-me desmembrado de qualquer humanidade, era só a fumaça branca e eu. Existiam casais e beijos por todos os lados, mas, juro, de onde eu estava não os avistava. Eram sempre dois pedaços de carne que se esmagavam nas esquinas de uma casa escura. Algo que facilmente poderia ser arranjado. Não foi exatamente isso que me recordou da minha ausência interna.

Sim, havia mulheres, sim, algumas desejosas, outras interessantes. Mas se confundiam num único rosto que eu não queria olhar porque era infinitamente conhecido e duplamente doloroso. Assim evitava focar minha visão em algum ponto nítido. Queria a abstração, o obtuso, o embaçado. O meu amigo, de tempos em tempos, me puxava para junto deles, para o chão duro, para uma conversa despretensiosa. Naquela hora, nesta véspera, no exato momento, os assuntos não me apeteciam, nenhum deles, qualquer que fosse. Em outra oportunidade, este meu próximo me apontou uma menina pequena que não parava de olhar em minha direção. Ah, se ela soubesse! Se ela suspeitasse da minha incapacidade de completar qualquer outrem. Se ela tivesse a noção da minha inutilidade, de como sou ridículo, da impossibilidade de fazê-la feliz mesmo que instantaneamente; se ela percebesse que eu era àquele momento um saco de ossos ambulante, sem veias quiçá artérias percorrendo os meus braços e pernas, que a minha caixa torácica expelira todo o meu sangue por desistência, por necessidade, por um pedido meu; se ela suspeitasse, ela não me olharia assim, dessa maneira, como se eu fosse a resposta para todas as suas argüições notívagas.

E foi então, num detalhe espacial, num pequeno rasgo da manta de narcóticos em que tinha me coberto, num minúsculo vão temporal, numa fuga ocular, quando tentamos não avistar e, sem perceber, os olhos caem em cima daquilo que havíamos evitado tão bem durante certo tempo. Eu enxergo um casal de namorados, que conhecia há décadas. E naquele momento eles não estão mais no lugar deles, mas eu e você e não havia mais ninguém ao nosso redor. Estávamos apenas acariciando um o rosto do outro, mirando-se nos olhos, sorrindo de satisfação plena, de não saber o porquê, de estar junto, de querer um bem eterno sem pensamento, de desejar de dentro, do estar junto. Eu queria você ali, aqui, ao meu lado, onde eles, os dois, e eu os invejava eternamente. Eu cobiçava com todos os meus poros, eu pulsava até a minha têmpora, eu latejava por dentro da minha pele, eu explodia quieto, eu percebia que esta realidade em que vivemos não me permitia ficar com você no momento em que eu desejava. E, por favor, não tentemos definir de outra maneira tudo o que aconteceu, de como nossa convivência rolou por debaixo da minha ignorância e eu não fui perspicaz o suficiente para alcançá-la. Eu queria aquele toque delicado em meu rosto e não tinha mais. Era isso que eu entendia.

Refugiei-me. Naquele momento, no exato instante eu precisava cambiar o ar que respiraria. Necessitava, qual um drogado de uma outra dose, não enxergar mais aquilo, não com esses olhos sóbrios que possuía, que possuo, que conseguem ver o todo e ainda imaginar um pouco além. Precisava achar o interruptor interno e desligá-lo. Bastava-me saber da minha completa nulidade por aquela noite, por hoje e para todo o sempre. Antepus meus pés um a um em direção ao banheiro, e na minha frente estava a pequena aludida anteriormente, esbarrei nela, tentei me desvencilhar nesta direção e só com muito esforço, quase físico, consegui rodeá-la. Andei vagaroso não percebendo todos os obstáculos humanos em que tropeçava, até a luz fria e forte do corredor para os toaletes.

E somente no ambiente antagônico ao da sedução observei na pequena logo atrás de mim. A presença dela quase me fecha a glote de angústia, me espreme na parede, com uma cobrança de uma atitude que não sei tomar, de um caminho imenso que podemos percorrer, mas eu não estava em condições de julgar qualidades e defeitos, e adentrei o masculino. Não cria nesta possibilidade, na coragem da menina de ter-me acompanhado, duvidava do óbvio e optei por me enganar com um outro tipo de verdade: a coincidência. Porém, esta durou pouquíssimo. Foi necessário apenas que saísse do cubículo para perceber que ela não tinha outra intenção naquele ambiente extremamente claro. Ela continuava parada, lavando o rosto pela enésima vez, e disfarçou o semblante assim que a encarei. E então? O que deveria ser feito? Será que ao homem é permitido este tipo de refugo? Inúmeras possibilidades e vozes se confundiam em centésimos na minha cabeça. Desde memórias de infância com meu pai me obrigando a tomar atitudes de homem para com meninas de oito, nove anos, quando o que eu queria era brincar mais um pouco, até a certeza tátil de que, inebriante melhor que aquela, talvez não encontrasse nunca. Por uma questão de destino – não coloquemos sorte ou azar – um ex-colega de trabalho entrou no ambiente logo em seguida e, ao me reconhecer, veio apertar-me a mão. Ficamos os dois, trocando amenidades e senti uma espécie de alívio. Não era necessário tomar uma atitude naquele momento. Logo ele me apontou a saída, para que voltássemos à escuridão. Não sem antes me perguntar de uma forma carinhosa por você. O que deveria ser respondido? Estava novamente cercado de pontos de interrogação sem nenhuma idéia da resposta correta a ser dada. Todos no lavabo escutariam a minha resposta. Isto, claro está, que inclui a pequena que continuava a lavar o rosto. Sem levantar nem a voz, e mesmo assim fazendo-me audível, não menti e disse que você estava longe.

No meio daquela neblina de danceteria, ao lado de meu camarada, perto das amigas dele, não percebi todos os aditivos fazendo efeito e logo estava flutuando, com o meu corpo desconexo, minha cabeça pendente, meu cérebro morto fazendo companhia ao músculo cardíaco. Não havia mais o meu entorno. E o fim de noite quase passa despercebido. Talvez não me recordasse de nada de ontem, no hoje. E então, uma pequena mão tocou-me delicadamente, como num sussurro, o que me fez despertar. Era a menina que havia sumido de minha percepção por dias inteiros e agora dialogava com apenas uma frase: “Eu admiro os homens fiéis”.

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