sexta-feira, 3 de dezembro de 2004

Aniversários

Havia sido acordado cedo com a notícia triste, mas esperada. Levantei-me sem palavras e completei minha higiene com o pensamento nublado. O tempo correu mudo até o cemitério. Só minha irmã falara, “Ela estava quietinha, o corpo subindo e descendo com a respiração. Até que em um momento parou. Saí do quarto e disse para a enfermeira que algo estava errado”. Ela estava com o rosto rosado, os olhos marejados, pouco preocupada com a sua aparência, ela que sempre foi tão vaidosa.

Peguei uma carona e só lembrava que este era o aniversário dela, minha mãe, que agora não estava mais, completava 54 anos. Como uma história circular, como algo ficcional, eu estava preocupado com isso. Ela que gostara tanto de festas, que fora tão avessa a tristezas, que enchera a casa para não ficar sozinha em eventos e em diversas oportunidades.

Os conhecidos vinham falar comigo e eu tentava desviar o assunto do óbvio. Não queria sentir ninguém com pena de mim, já me bastava a mim mesmo. Sem nenhuma perspectiva sobre o que faria da vida, no que trabalharia, completamente sozinho e agora órfão por completo. O pior era que naquele dia não cabia qualquer atitude inesperada. O constrangimento me asfixiaria por completo antes do segundo passo ou da terceira palavra. A idéia do seu aniversário era fixa na minha cabeça muito por isso. Ótimo recurso para poder desvencilhar o foco sobre mim. Também sabia que isso não era justo, era extremamente egoísta pensar só em mim no enterro de minha mãe.

Por sorte ou porque assim tinha que ser, vários amigos meus, em pouco tempo, me envolveram e, por inúmeros motivos, puxaram assuntos das mais diferentes espécies. Fugia dos rigores da etiqueta e não quis ficar perto do corpo físico dela, tão (por mais que isso possa parecer óbvio, não o é) imóvel, distante e frio.

Mantinha-me seguro turvando o meu pensando com a idéia do seu aniversário. Não achava justo. Só aquilo eu não achava justo. Sei que as pessoas morrem e, principalmente, ela já estava cansada, já não conseguia mais lutar, tinha desistido há muito. Mas, tinha que ser exatamente no aniversário dela? Com essa idéia atravessada eu me mantinha consciente do meu arredor. Parentes sumidos de longa data, amigos desconhecidos, rostos vagamente familiar, eu tinha que cumprir um ritual burocrático, tão diferente da verdade, do que ela sempre pediu em vida.

Ela brincava seriamente que gostaria de doar todos os órgãos do seu corpo. Depois da morte, insistia, não havia mais nenhuma necessidade deles. E, no dia, que façam uma festa, como aquelas que costumam fazer ao sul dos Estados Unidos, com bandas de jazz tocando Standards e pessoas se embriagando. Ou, como acontece no Nordeste, os amigos se reúnem para beber o corpo – no caso de seus desejos – ausente. Quis a fatalidade que ela não pudesse doar nada e que o período de agonia tivesse minado as forças dos mais próximos, impedindo que tivéssemos qualquer atitude longe da burocrática.

Talvez por isso, era tudo tão impessoal. Um corpo deitado, com expressões faciais que de nada se pareciam com as minhas lembranças, ou com a jovialidade verdadeira que todos ali tiveram a oportunidade de conhecer. Nada pode ser tão antagônico à espontaneidade que a câmara mortuária.

Em determinado momento, chegou o inevitável, eu deveria entrar naquele cubículo, para escutar as últimas preces. Eu que não cria nem na possibilidade de crer. Pedi para ficar à distância, não queria encarar a palidez dela. Fiquei atrás de todos, como se fosse um transeunte qualquer que tivera a curiosidade de saber quem são todas essas pessoas, por que elas estão todas aqui, nesta pequenina sala, quase sem ventilação. Como se isso fosse possível. Algumas pessoas falaram e era como uma ladainha que se repetia e apenas me enfadava. Todas as vozes eram desconhecidas para mim. Pessoas que nunca conviveram com a minha mãe, mas que, por boa-vontade geral ou por um carinho dedicado especialmente a ela, se propuseram a fazer uma oração final. Tão impessoal quanto qualquer outro ato que ocorrera até ali.

Quando todos acabaram, minha irmã virou-se para mim e perguntou se eu queria falar alguma coisa ou se o caixão poderia ser fechado. Aéreo, assenti com a cabeça sem pensar em nada. Ou, o inverso, com o pensamento fixo de que era aquele dia o de seu aniversário e que ninguém havia lembrado até agora desse detalhe. Dois homens pegaram a tampa e eu dei um passo à frente e deixei escapar um fraco “espera”. Algumas pessoas ficaram surpresas o que me deu mais medo. Não sabia o que estava fazendo, não tinha a menor idéia da seqüência de atitudes que deveria tomar, mas continuei. “Hoje é o aniversário dela”, alguns concordaram com a cabeça. “Eu acho que ela gostaria que nós cantássemos ‘parabéns’ para ela, acho que ela ficaria feliz”. Um centésimo de silêncio para depois ser quebrado por um bater ritmado e, inicialmente, fraco de palmas. Que foi encorpando, crescendo, até que todas as pessoas que estavam do lado de fora vieram e também bateram palmas e cantaram juntas. E, então, eu percebi que talvez tivéssemos agradado a ela. Minha mãe teria ficado feliz, tenho certeza.

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