quinta-feira, 23 de dezembro de 2004

Querer no pretérito imperfeito

Ao rodar mais uma vez meu copo de cerveja e olhar adiante eu tive a certeza de que deveria ir embora. Ninguém no raio de poucos metros era conhecido. As pessoas dançavam e eu queria apenas a menina por quem eu sonhei minha vida inteira, sem mesmo saber disso. Crítico como eu sou, havia analisado cada detalhe das faces sorridentes que desfilavam sem perceber que o faziam. Eu, ácido, eu, poço de ressentimento, não queria, não me deixava me conectar, me contaminar por essa felicidade sem motivo. Queria as coisas da maneira como havia planejado. E se elas não saíssem conforme o plano, o errado seria o mundo, não eu. Pode até parecer pretensão, e é. Nunca havia admitido isso para ninguém. Talvez eu me ache o suficiente. Talvez a minha intenção seja a de ser deus, como já disse Fellini. Talvez seja esse o motivo que goste tanto desse lugar aqui, onde eu domino todas as personagens, e todos têm os gostos e gestos que eu queria que eles tivessem. Isso – as somas dessas informações – é um pouco doentio, já que essa idéia é impossível. O provável é uma série de decepções em seqüência. E como eu detesto me decepcionar... Por isso, eu já creio que o normal, o meu normal, é a infelicidade, ou o inverso da felicidade – que podem ser coisas diferentes. E fico tentando me convencer que há gente solar e lunar no mundo, e eu faria parte do segundo grupo. Não consigo elucidar se esse meu raciocínio está correto, e é improvável que consiga. Mas a questão fica: se eu agisse menos preocupado com a perfeição, ou com a perfeição de acordo com os meus pensamentos, com o que eu acho perfeição, será que essa tristeza, tão minha companheira dos últimos tempos, será que ela iria embora? As respostas, quaisquer que sejam, são meros exercícios de especulação. A tentativa é um caminho saudável. O modo, o jeito, a forma como isso pode ser feito, já não sei. Tenho medo de criar artificialmente uma felicidade, daquelas que seguem normas, padrões, ou que podem ser compradas dentro de frascos ou no shopping center. O meu intuito final é ser um ser vazio, livre de pré-conceitos e verdades pré-estabelecidas. Mas como desejar algo que de antemão eu sei que será ruim? Como ansiar por uma festa de natal, por exemplo, lotada de pessoas que mal conheço e que se acham no direito de me chamar de família? Como ficar feliz com isso? Eu dou dicas, explicito o que acredito para que tudo se torne menos doloroso, ou demonstro o que estou sentindo para alguém me ajudar, mas ninguém vê, ou ninguém quer enxergar – o que, de acordo com o clichê, é mais viável.

Na festa todos haviam tentado. Eu nem isso. Não queria me dar a chance de um sorriso escapar sem querer, de uma alegria brotar sem que eu percebesse. Eu queria manter-me com os pés dentro da lama, queria piorar o meu aspecto, se me molhasse com a chuva, enquanto tentasse pegar um ônibus de volta, melhor. Queria chafurdar dentro de uma agonia que eu achava genuína. Que eu não conseguia nem consigo descobrir a origem, porque não tinha, nem tenho a intenção. O meu fim, e talvez seja essa a minha maior descoberta, era me mostrar um ser superior, não compatível com esses valores tão pequenos. Tão cotidianos, tão crônicas da vida privada. Em meus sonhos, e em meus desesperos, só as grandes questões são importantes. Pequenezas devem permanecer à distância. Num lugar seguro, sem que eu saiba da existência, para não atrapalhar nas minhas elucubrações sobre as grandes questões da vida. (Aliás, quando é que eu penso nas grandes questões?)

Fugi porque não queria aceitar a minha incompatibilidade entre o que eu via como mediocridade e a minha própria. Não queria demonstrar que era incapaz de ter qualquer emoção de verdade, daquelas que simplesmente brotam. Inclusive, eram exatamente essas que eu queria afogar, assassinar cruelmente, com requintes de terror. Não quero cair numa espécie de auto-ajuda pelo inverso. Nem transformar isso numa música do Travis e perguntar por que é que sempre chove em cima de mim. O que eu quero é apenas entender, tentar trilhar um caminho para o vazio de sentimentos anteriores. Desejo apenas não saber o que vai acontecer, ou imaginar todas as possibilidades, antes de tudo ocorrer. Tenho a intenção de nem planejar fugas espetaculares, nem conceber dias seguintes. Não quero mais encarar o futuro como algo possível.

Então desci as escadas, com o ego ferido, pensando em como é que essas pessoas podem se divertir com isso, quando o errado era exatamente aquele que ia embora naquele momento, sem nenhum porquê especial. Não havia motivos para não gostar. Todos os detalhes da festa funcionavam à perfeição, os pequenos erros já tinham sido consertados, havia piadas, e até uma empolgação incipiente. Eu não entrei naquele clima porque tinha recusado antes mesmo do convite. E nem tentei lutar contrariamente.

Nenhum comentário: