sexta-feira, 9 de setembro de 2005

Série personagens fictícios

capítulo 7: Diálogos no coletivo

Estava muito calor quando entrei no ônibus. Para piorar, o coletivo, bem cheio, não me deixou escolha e sentei-me no único lugar livre. Foi uma espécie de alívio. Estava há muito em pé e tinha andando bastante no dia. Meu pensamento logo se desligou e foi lá para fora, para o mar de Copacabana com aqueles gringos todos querendo parecer um carioca legítimo. Quando voltei para dentro, já estávamos quase em Ipanema.

Curioso que, nessa exata hora, reparei que atrás de mim, não sabia exatamente onde, dois sujeitos conversavam e um deles, apesar do português extremamente correto, possuía um leve sotaque. Colocava algumas vogais como tônicas, quando deveriam ser átonas, nada que impedisse a sua completa compreensão por qualquer pessoa. Mas, esse detalhe fez com que eu prestasse atenção na conversa.

Tentei, antes mesmo de ele pronunciar uma palavra, traçar uma história pregressa para aquele gringo que sentava atrás de mim e com um português tão bom. Por que ele estaria no Brasil, quais era os interesses dele, enfim, um miniperfil. Entretanto nada que fugisse dos clichês. Em pouco tempo, ele me forneceu dados que, de certo ponto de vista, comprovavam a minha viagem pessoal. Por outro lado, ele construiu uma persona mais bojuda que era bem diferenciada daquela frágil que tinha imaginado.

Toca o telefone do gringo. Ele atende, vira o rosto para o lado da janela, abaixa o tom de voz, mas percebo que ele não pronuncia muita coisa além de "sim, sim, tudo bem, ok, vámos ver...". Depois, volta para conversar com o sujeito ao lado:

- Ela de nóvo.

O camarada dele, com uma voz efeminada, responde: - Cara, você tem que ser mais incisivo. Tem que explicar para ela o que você quer...

- Sim, mas éu disse para ela...

- Tem que falar: 'Olha, eu não tenho tempo para você hoje'

- Foi bom, quando nos conhecemos, na boate, mas éu realmente tenho que fazer um monte de coisas hóje... Não sei o que vou encontrar, se a ver de nóvo. Sabe, na noite, tem o álcool, as luzes, a música...

- Então. Se você não quer nada, diz para ela!

- Não sei, éu disse, mas... Ela é legal.

À medida que ele me dava mais informações, acrescentava mais detalhes na minha história. Tudo estava claro. Apenas a ligação entre os dois portadores das vozes estava ainda embaçada. Disfarçadamente, me virei para enxergá-los. Na hora pensei que ele fosse argentino pelo porte: tinha o cabelo grande e dourado. Era musculoso, mas magro, com traços do rosto finos e delicados. Era um garoto muito bonito, deve fazer sucesso entre as mulheres. Principalmente aqui no Brasil, onde ele é um estranho. O camarada dele é fácil descrever: um negão com dread locks pequenos, sendo que alguns tufos eram roxos.

- Tinha já combinado ir na casa de Silvana hóje. Não posso desmarcar. As mulheres aqui são muito fáceis. Basta ir a uma boate...

- Então, você não precisa se prender a essa mulher, cara. Basta sair. Agora, quando ela ligar, fala que você não quer...

No que aconteceu algo um tanto quanto inesperado. O sujeito que estava exatamente atrás de mim e na frente deles, se intrometeu na conversa e interrompeu o negão:

- Rapaz, você não devia dar ouvidos a ele...

E então, algo ainda mais absurdo, outra pessoa, agora ao lado deles, que estava de pé, também falou:

- Eu concordo. Ele tá querendo se aproveitar de você. Não tá vendo que ele é veado?

Foi o suficiente para se instaurar uma balbúrdia:

O negão, com a voz ainda mais estridente, respode: - Vocês estão loucos! O que é isso?!

O sujeito de pé engrossa a voz para encarar o negão: - É isso mesmo! É veado, bicha, gay! Ele quer é te comer, garoto, não deixa não! Fica esperto!

O que está sentado atrás de mim na frente deles tenta um tom conciliador, mas todos falam quase ao mesmo tempo, só se escuta algumas frases soltas: - Peraí, um minuto, não é bem assim... Eu só acho que ele pode ter um algo a mais com a menina, sem necessariamente...

O garoto em silêncio, estupefato, enquanto o negão continua: Vocês não me conhecem! Quem são vocês para falarem alguma coisa de mim, seu bostas, seus merdas! Eu falo três línguas, tenho duas faculdades e sou veado sim, mas não devo satisfação a nenhum de vocês! Seus filhos da...

- Veado! Quer se aproveitar do gringo que não entende nada, que está perdido...

- Calma, calma gente, não vamos nos exaltar...

- Vai tomar no...

- Gente, que isso...

- Tu deve ser um enrustido, é por isso que fica aí, reclamando...

- Calma aí, génte - fala finalmente o garoto - vocês estão todos loucos...

O da frente, tenta a sensatez: - Menino, você tem que fazer o que achar melhor e não escutar os outros. Se quiser ficar com a menina, tudo bem, todo mundo vai entender...

- Eu vou é saltar - diz o negão, já se levantando - vambora. Não posso ficar aqui com um bando de escrotos...

- Mas eu não falei nada demais - diz o da frente...

- Vaitomano...

- Vamos, vambora - diz o gringo

Levantam-se os dois, esbarram propositalmente no que estava de pé e caminham às pressas para a saída. Não sem antes escutar um "Veados!", proferido pelo sujeito que logo em seguida se sentou no banco. Eu, que estava me divertindo horrores, também tive que saltar no ponto em seqüência.

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