sábado, 2 de setembro de 2006

Na raia quatro

Na raia quatro, representando o clube Nacional, do Rio de Janeiro, Fernando Barbosa. Ele levanta o braço para se apresentar ao público nas arquibancadas quase vazias. 200m livre, a prova que ele mais gostava de nadar. Balizado com apenas dois segundos e meio acima do recorde brasileiro da categoria: seu tempo é 2’00”93; a marca história, 1’58”25. Ao seu lado, nas raias cinco, um garoto do Espírito Santo que ele já tinha visto em outros eventos. Fernando tentava imitar o ídolo Gustavo Borges e o russo Yevgeny Sadovyi. De Borges copiava o estilo impecável. De Sadovyi, que era um grosso nadando, a estratégia. O russo fazia a maioria das provas em negativo, com a segunda parte mais forte que a primeira. Geralmente enganava os adversários e conseguia ultrapassá-los no sprint final. Era um nadador cerebral que tinha completa noção de sua própria capacidade e não se deixava influenciar por desdobramentos da prova. Fernando só vira Sadovyi nadar ao vivo uma única vez. Foi na piscina na praia, em Copacabana. Mas, ironicamente, Sadovyi perdeu para um desconhecido que lhe aplicou a mesma tática.

O juiz assopra o apito para que todos subam no bloco de partida. Fernando tenta apagar todos os pensamentos para focar somente na largada. Já havia imaginado como seria cada centímetro dos 200m. A queda na água, as pernadas até o corpo emergir, as braçadas por volta, as respirações, a distribuição da força, tudo. Tinha repassado cada detalhe até chegar ao nervosismo, antes de ir para o banco de concentração. “Às suas marcas”, pede o juiz e todos se abaixam: BIP. Os oito competidores mergulham.

Fernando sente a água gelada pelo corpo e, imediatamente, começa a bater as pernas. Em menos de um segundo, já emerge e roda os braços imprimindo um ritmo forte. Ao seu lado o capixaba dispara. Dá um tiro de 50m como se a prova fosse outra, mais curta. Fernando raciocina que ele deve fazer a sua prova, sem pensar nos adversários que, provavelmente, vão “morrer” antes do final. O garoto da raia cinco, entretanto, abre quase um corpo antes da primeira virada.

A tática de Fernando é forçar mais a cada 50m, contando que o primeiro quarto de prova seria o mais rápido de qualquer jeito por causa do impulso de largada. Logo, ao bater na parede, suas pernadas se crispam e ele aumenta a velocidade dos braços. Antes da bandeirinha de 15m, ele já tirou metade da diferença. Já está na cintura. O capixaba segura e consegue manter esta diferença até os 100m. Nova virada e Fernando força mais as braçadas, tentando não perder o estilo, como Borges consegue fazer. Tira um pouco mais da distância para o capixaba, mas o adversário, surpreendentemente, ainda não “morreu”. Fernando tem paciência. “A prova é de 200m”, raciocina debaixo d’água.

A distância de um para o outro se mantém igual até os 150m. Fernando nada nas costelas do raia cinco. Os outros adversários estão distantes. A prova vai ser decidida por esses dois. Ou um ou o outro vai ser campeão brasileiro. Toda a pequena torcida da arquibancada começa a gritar pelo seu favorito.

Na virada, Fernando repete a estratégia de aumentar a velocidade, mas o capixaba também força mais e consegue manter a pequena vantagem. Nos 25m finais, Fernando alcança o ombro do capixaba. Pega o ar mais uma, duas vezes e prende a respiração para o sprint. O adversário retira forças de não se sabe onde e tenta, todo desengonçado, manter a liderança. Fernando mantém o estilo clássico e só aumenta a velocidade. Na bandeirola dos últimos cinco metros não é possível determinar quem está na frente. No “T”, Fernando faz um rolamento maior e se estica todo para bater na borda. A arquibancada está em polvorosa. Alguns gritam de alegria, outros de tristeza, a algazarra é geral. São centésimos de segundos até os dois tirarem os óculos e se virarem ao mesmo tempo para ver o resultado no placar eletrônico...

Toca o despertador. Está na hora de Fernando ir para o trabalho. Antes de se levantar, ele olha o teto branco, vazio, tentando lembrar de cada detalhe do sonho. Já fazia tanto tempo que não nadava que ele nem mais tinha certeza do que aconteceu naquela tarde-noite. Ele tinha ganho ou perdido? Achava, agora, depois do sonho, que vencera.

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