quinta-feira, 29 de novembro de 2007

A viúva

Quieta num canto, sozinha e com ar triste. Assinava uns livros do marido, morto há mais de 20 anos. Cabelos milimetricamente pintados de pretos na parte externa e deixados brancos na parte interna. A única detentora dos direitos do escritor considerado o maior da língua espanhola e um dos maiores do mundo no século xx.

Cheguei atrasado para a palestra de María Kodama, a ex-secretária, ex-faz-tudo do Borges que se tornou, em meio a bastante polêmica e em uma cerimônia paraguaia, literalmente, sua mulher. A primeira coisa que quis foi observá-la, perceber quem ela era, a partir de sua fisionomia e atitudes. Quem é essa mulher e por que ela é tão detestada pelos mais antigos amigos e familiares de Georgie.

Esperava algo mágico, talvez borgeano, que, apenas ao vê-la, decodificasse toda a esfinge, sem deixá-la me devorar. Entretanto, acanhei-me. Ela estava tão desprotegida, sendo ignorada por tanta gente, que imaginei que deveria guardar meus ovos podres metafóricos e agir como um simples transeunte dentro de uma livraria.

Não sei quem ela é, foi, ou representou para Borges. E nunca saberei, nem saberemos. Isso, entretanto, é de uma irrelevância atroz. Ela é desimportante para entender o argentino e, se ganha dinheiro, ou não, com a obra do escritor, também não modificará a maneira como se o vê. Apenas alimenta a faminta indústria da fofoca.

***

ps1. Importantes e graves, porém, são as mudanças que a Cia. da Letras fez na nova edição do "Livro dos Seres Imaginários". Na versão da antiga detentora dos direitos no Brasil, a Editora Globo, Borges divide a autoria do livro com Margarita Guerrero, e explicam que a colaboração da ex-bailarina, com o seu conhecimento de várias línguas e experiência internacional, foi essencial para a feitura da obra. Na da Cia. das Letras, simplesmente limam Guerrero da capa e colocam-na para uma página interna dizendo simplesmente que "colaborou".

Se não bastasse, retiraram também um prefácio da obra, assinado por Sylvia Molloy. E, ainda por cima, a versão das Letras é mais cara. E dizem que Kodama SÓ é ciumenta...

ps2. É mera coincidência que duas viúvas de origem japonesa sejam odiadas pelos seguidores dos respectivos maridos mortos na década de 80: além de Borges e Kodama, Lennon e Yoko Ono.

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