sexta-feira, 10 de abril de 2009

Transposição

Vi o monólogo do Guilherme Leme dirigido pela Vera Holtz sobre “O estrangeiro”, do Camus, um dos livros que mais gostei. Antes de assisti-lo, estava com a sensação de que essa era uma péssima ideia, porque a peça nunca se aproximaria da minha imaginação. Eu estava certo, e também errado.

Primeiro porque a peça me mostrou outro Mersault (o protagonista). Lido numa época bem triste na minha vida, ele me refletia nas palavras. Era um sujeito deprimido, que nada o tiraria da inércia. Era anódino, anestesiado com o mundo. Meu gosto foi por sentir que havia outro de mim no mundo, sentir que havia um igual, que não estava sozinho e que outra pessoa já tinha passado pelo que eu passava – e sobrevivera para contar.

Já o do Guilherme Leme é um homem que a expressão “tanto faz” recorre como uma vírgula. Ele percebe a falta de propósito de todas as coisas que o cercam e decide ser feliz com as pequenas coisas, tendo consciência das parcas escolhas que pode ter.

A famosa primeira frase: “Não sei se a minha mãe morreu hoje, ou ontem”, para mim, ao lê-la, era dita aos sussurros, sem força como por um sonâmbulo. Na peça, Guilherme Leme diz rápido, alto, para mostrar que isso não importa. Qual é a diferença de ela ter morrido hoje ou ontem?

Na versão do teatro, Mersault é exatamente o “homem revoltado” que Camus exemplificou no seu ensaio “Mito de Sísifo”. O homem que, diante das agruras diárias, de todo o sofrimento cotidiano, não se desespera e se suicida (o único problema filosófico para Camus). Ele não se faz de coitado e admite a parcela de responsabilidade por aquilo que ele se tornou.

Para mim, era um homem que acumulava angústias e explodiu um dia, sem saber muito bem por quê. Para a peça, é um homem que matou outro por causa do sol, do calor, do amigo. Tanto faz.

Portanto acertei quando profetizei que a peça não se aproximaria da minha imaginação, já que ela apontou outros caminhos e interpretações para o mesmo texto, até mais próximos, provavelmente, do original pensado por Camus. E não, não foi uma péssima ideia.

2 comentários:

Lívia Ribeiro disse...

Oi, acabei de assistir O estrangeiro e fiquei com uma impressão muito parecida com a sua. No inicio eu fiquei olhando para o Paulo Leme e duvidando que ele fosse o senhor Mersault. Pq ele fala com tanta energia? Ele não devia ser mais deprimido, falar mais lentamente, mais baixo? Mas de algum ponto até o final, vi só o senhor Mersault. Ele havia mesmo matado o árabe. Tanto faz, ele é indiferente mesmo... Não foi meu ponto de vista, mas foi a vista de outro ponto. Adorei seu comentário. Abraços!

CNC disse...

Oi, Lívia, obrigado pelos elogios. Acho que todos temos uma imagem mental de um livro quando lemos. E temos que nos deixar surpreender pela visão dos artistas quando eles adaptam para outros formatos.

Tive essa sensação também uma vez em que filmei um curtinha metragem cujo roteiro era meu. Os atores conseguiram dar um tom muito melhor - na minha opinião - daquele que eu tinha proposto inicialmente. Achei incrível, e incrivelmente bom.

:-)

bjs