domingo, 6 de fevereiro de 2011

Metáforas e literalidade

Salman Rushdie, no prefácio da edição comemorativa de 25 anos de seu "Os filhos da meia-noite", diz que quando escreveu sua obra-mor, imaginava que o livro seria interpretado pelos indianos como se fosse do mais seco realismo, enquanto os ocidentais veriam metáforas até na mais banal das frases. "Tio Boonmee que recorda as vidas passadas", do tailandês Apichatpong Weerasethakul, que ganhou a Palma de Ouro de Cannes em 2010, usa um pouco dessa síndrome para contar uma história da transformação de uma sociedade rural, tradicionalista, secular, em um pastiche de um conglomerado urbano baseado num modelo internacional.



O filme narra a história de Boonmee, um fazendeiro já sessentão que sofre de problemas nos rins. Ele convive com sua cunhada, um funcionário e um enfermeiro, que cuida de sua saúde, e toma conta de uma fazenda que produz árvores frutíferas. Em certo momento, ele recebe a vista de sua mulher, morta há 19 anos, e de seu filho, desaparecido há 13, e que se transformou em um macaco-fantasma.

Diferentemente de uma reação ocidental, racionalista, Boonmee e todas as pessoas que presenciam essas aparições se comportam de maneira tranquila, como se a mais cotidiana das visitas tivesse aparecido. Claro que isso é o suficiente para o filme ser encarado como fantástico, pelo pessoal do lado de cá do globo. Até vi gentes-boa colocando "Tio Boonmee..." no mesmo saco de outras produções que lidam com o sobrenatural e que estão em cartaz, tipo "Biutiful" ou o novo do Clint Eastwood. Bem, acho que aquela expressão que usa alhos e bugalhos pode ser usada aqui.

Vejo essas referências ao mundo dos mortos, ou ao fantástico, digamos assim, como uma citação de um mundo idílico e bucólico que Weerasethakul mostra, nostalgicamente, como tendo se perdido. Quando Boonmee fala para a cunhada que ela deveria se mudar para a fazenda após morte dele, ele argumenta que ela não deve ficar num apartamento apertado na "cidade inferno".

Até mesmo as citações ao budismo, que foram utilizadas para exemplificar como Boonmee e os seus convivas se relacionam de maneira corriqueira com os mortos, são usadas, no meu ver, de maneira bem mais complexa que apenas para demonstrar essa relação com o outro lado da vida. Boonmee diz que está doente por conta dos muitos comunistas que ele matou [estamos ao lado do Laos, é bom lembrar, que teve uma guerra civil crudelíssima até a década de 1970 e que a partir de então se tornou comunista]. Ele estaria pagando em vida pelo carma adquirido - que é um dos preceitos do budismo. Não é à toa a referência. Antes de morrer, Boonmee pronuncia um discurso sobre uma alucinação em que ia ao futuro e como ele era perseguido até ser descoberto e apagado, por ser uma figura do passado. Enquanto fala, fotos de homens vestidos com a farda do Exército aparecem armados e juntos com um figura vestida de macaco.

Boonmee é o passado deslocado, que não mais consegue se adaptar aos novos tempos. É a representação de um mundo cheio de seres fantásticos, como uma princesa feia, que, ignorada por seus súditos e carente, é possuída por um peixe. Nesses novos tempos, o monge usa celular e não aguenta ficar em clausura porque fica entediado: não há nem um rádio! Nesses novos tempos, o monge quer tomar banho quente, dormir no ar condicionado, comer no seven eleven, escutar rock. Ele assiste à e fica hipnotizado pela TV.

Ao fim, percebemos que "Tio Boonmee..." está mais próximo de nós que podemos perceber. Fala sobre o fim da diversidade cultural e da homogenização dos países. Aborda a extinção das mitologias das sociedades, que tornavam cada povo rico às suas maneiras, e as substitui por um padrão universal, que impõe hábitos baseados em valores que não remetem à história das pessoas. Talvez já tenhamos passado por esse mesmo processo, talvez ele não seja uma referência imediata para habitantes de países que sofreram em outros momentos com essa globalização. O certo é que com a morte de Boonmee, ninguém mais recorda de outras vidas.

2 comentários:

Romullo Pontes disse...

Bom texto. Depois do que disseram você e Doug, vou assistir. Abraço!

contonocanto disse...

Bem, só tenho a alertar que você não espere um filme tradicional, ok?