sábado, 4 de junho de 2011

Utilitarismo e a estética

O homem se tornou aos poucos um animal fantasioso que deve preencher uma condição de existência a mais que todos os outros animais: o homem deve de tempos em tempos acreditar que sabe a razão por que existe, sua espécie não pode prosperar sem uma confiança periódica na vida! Sem a fé na razão da vida! E a espécie humana acabará sempre por decretar: "Há qualquer coisa de que não temos de forma alguma o direito de rir." E o mais malicioso dos filantropos acrescentará: "Não somente o riso e a sabedoria alegre, mas também o trágico com sua sublime sem-razão, fazem parte dos meios para conservar a espécie!" - E por conseguinte! Por conseguinte! Por conseguinte! - Nietzsche, n'"A gaia ciência".
O poeta e filósofo Antônio Cícero, em uma entrevista para uma amiga, disse uma frase, logo no início da conversa que eu achei interessante, sobre a leitura e o prazer de se ter contato com um poema: "Para ler e fruir poesia é necessário dedicar tempo, concentração, atenção, cuidado a um texto que não tem nenhuma utilidade." Nesse sábado, o "Prosa e verso" publicou um artigo dele, por conta do evento "Forma e sentido", o qual ele é o curador, em que ele fala, razoavelmente, a mesma coisa, com mais palavras: não há quaisquer motivos para se ter contato com a poesia.

Explico melhor: a poesia não tem utilidade. Num mundo em que as pessoas agem cada vez mais em prol de um objetivo, ou para aproveitar alguma coisa, a poesia é colocada de lado exatamente porque não tem uma razão - clara, explícita. Eu teria coragem de acrescentar a arte em geral, o que não é o caso de Cícero, que acredita que esse aspecto se adeque [mais ou melhor] aos poemas. Acrescentaria porque Cícero se refere à questão simplesmente temporal: é possível ter fruição com outros tipos de artes - um quadro por exemplo - instantaneamente. Ao se olhar o "As meninas" de imediato você é captado para dentro dele. Enquanto uma poesia precisa, na opinião dele, de um... tempo, para se passar apenas da reunião de palavras. Eu concordo com esse viés do tempo, claro. É inegável que é necessário um tempo para a poesia, mas eu acho que isso pode ser levado para todas as artes.

Explico melhor: É possível alguma comunicação na primeira e mais primária leitura de uma poesia - não em todas, claro, mas essa possibilidade há [vide a propósito o poema do Murilo Mendes, "Anti-elegia no. 2", publicado pelo próprio Cícero no seu blog]. Também não é em todo quadro que se pode captar sua porção estética num primeiro relance. Penso em Mondrian, por exemplo. Assim como para alcançar [as] diversas faces de uma poesia é necessário esse tempo a que o Cícero se refere, o mesmíssimo raciocínio se aplica a qualquer outra arte. Inclusive, uma de minhas definições favoritas para a arte, é aquilo que se desdobra infinitamente sobre si. Portanto, nesse sentido, arte em geral e poesia em específico estão dentro de um mesmo raciocínio - e não é necessário separá-los para chegar onde quero chegar.

Explico: Na minha interpretação, o que Cícero fala é que vivemos num tempo "utilitário", onde cada ação nossa é feita em direção a algum objetivo, com sentido [tanto sinônimo de "razão" como de "direção"]. Fazer algo sem [esse[s]] "sentido" é fugir de uma atividade automática, autômata, que cumprimos por estarmos dentro de uma sociedade que nos coloca como peças dentro de uma engrenagem. Somos inundados por necessidades pueris para cumprir uma determinada ação auto-imposta, consciente ou inconscientemente. Repetimos nossas atividades, sem autocrítica, apenas por uma espécie de ordem implícita de que devemos fazer. Ao parar, ao interromper essa série de obrigações [obrigar + ações], é como se estivéssemos despertando. Saindo dessa fila infinita em que tínhamos um espaço, porque seguíamos andando na velocidade  - no passo - que nos era ditada. Ao interromper esse caminhar, esse colocar de pé ante pé, atrapalhamos o fluxo contínuo, que havia - e seremos criticados / chamarão nossa atenção por isso. E tomamos consciência. Ou tomamos consciência de algo, que, talvez, no início, não sabemos bem o que é. Podemos olhar para o lado e perceber os demais apenas caminhando em frente, progressiva e progressistamente, podemos olhar para trás e perceber o infinito que é essa fila, podemos mirar o horizonte e não enxergar quando acaba. Não conseguiremos, provavelmente, entrar na fila incólumes, outra vez. Nem passear indiscriminadamente através dela.

Para fruir a arte, é necessário usar outro tempo, que não o utilitário: o tempo estético. Nele, não há uma certeza de quando você vai ser tocado pela produção artística, nem se você vai ser tocado por ela. Você pode, no máximo, se entregar, desligando os relógios que contém números, para o objeto em questão e esperar - no sentido de aguardar - que haja uma conexão, que haja uma interligação entre observador e observado.

E não há nada menos valorizado numa sociedade automatizada, prática, controlada pelo seu próprio excesso, que essa incerteza completa sobre o "quando", e ainda por cima, ou sobre a efetividade de uma atitude. Por isso, a arte - e a poesia apenas é um exemplo fácil de ser entendido - é tão pouco valorizada, itself. Para entrar nesse mercado utilitário, em que cada artifício deve cumprir uma função, deve ter um valor de fácil decodificação, de comunicação instantânea, ela foi binarizada, foi transformada em 0 e 1, foi - não no último século, mas ao longo de toda a existência, e aos poucos, e acompanhando a transformação social - mercadorizada.

ps. A filha do Lacan, Judith Miller, também em uma reportagem do "Prosa..." fala sobre a necessidade de cada indivíduo em manter sua loucura particular. Só assim, ele seria único, se tornaria diferente de seu par. Não poderia estar mais de acordo com essa questão.

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