sábado, 23 de julho de 2011

Fragmentos de uma edição

Se a vida é edição, o que deixamos de lado também pode ser visto como vida. A seguir, os trechos cortados de um ensaio que estou escrevendo. Duvido alguém acertar o assunto.

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E se for uma circunstância sofrida, aí, piora. O peso é, por vezes, demasiado para se carregar apenas com a razão. É preciso uma explicação, algo que dê um sentido e compense a dor pelo que se passa, mesmo que baseado em uma imaginação que não respeite qualquer realidade. Com frequência, o ímpeto de explicar o inexplicável é lembrado como uma das possíveis origens das religiões. Como não sabemos o que vamos encontrar após a morte, por exemplo, inventamos uma grande mitologia, que envolve ora a vida eterna, ora reencarnações em série. Dentro dessa lógica, de fundo ilógico, temos uma série de comportamentos a cumprir para seguir adiante, passar de fase – num linguajar de video-game – e alcançar as benesses. Claro que essa troca de procedimentos considerados proveitosos durante a vida por uma pós-vida de benefícios se torna um mecanismo de poder, deixando em uma posição de privilégio quem determina o que é uma “boa conduta” sobre aquele que “apenas” precisa seguir essas regras

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O curioso fica por conta de uma tentativa de explicação para eventos considerados bons.

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Quando há um acontecimento por acaso, sempre nos surpreendemos. Exemplos: ao pensar em alguém, logo em seguida, encontrar a pessoa. Quando se está precisando de dinheiro, e se encontra ou se recebe um valor. Etc. Etc. Etc.

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Só que, às vezes, não dá para enquadrá-lo simplesmente dentro de uma categoria aleatória.

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O amigo e depois desafeto de Freud propõe que as sincronicidades devem se diferenciar das ações simplesmente aleatórias, mas que não...

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Nietzsche, ainda no século XIX, ao perceber o enfraquecimento da explicação divina para os acontecimentos, foi contra a substituição dessa figura onipotente por outros recursos, como, inclusive, a ciência. Para ele, a troca da crença no deus cristão por um ícone qualquer seria apenas a substituição das causas do niilismo. O super-homem encararia bem a realidade com sua alta dose de absurdo, e não recorreria à fantasia – muito menos a disfarces. Mas esse, também, não é o caso.

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Essa imprevisibilidade sistemática é o que nos seduz.  Juntamos o melhor dos dois mundos. Estamos dentro de um arcabouço razoavelmente seguro, mas podemos ser completamente livres, dentro dele, desde que não saiamos de lá. Pensemos num solo musical. Dentro de determinadas regras, o músico pode inventar o que ele quiser. Pensemos num equilibrista na corda bamba – com rede de proteção lá embaixo. Pensemos nas competições, mais especificamente nas competições esportivas. Quando dois times de futebol entram em campo, por mais superior que um seja sobre o outro na teoria, o resultado, o que vai acontecer após os 90 minutos regulamentares é quase totalmene aleatório, mas respeitando algumas regras literalmente básicas. Salvo um evento externo – como um blecaute no estádio, ou uma chuva torrencial, sabemos que um time vai ganhar, ou haverá empate. Não sabemos quem vai ganhar, ou se ninguém vai ganhar, menos perder – portanto o grau de aleatoriedade está respeitado – mas um desses três resultados está garantido – e, consequentemente, os parâmetros estão afixados.  O mesmo acontece com todos os esportes coletivos – mesmo naqueles que não existe empate ou que demoram dias para terminar. Nos individuais, além desse aspecto de aleatoriedade-controlada, sobre quem vai ganhar, quem vai perder...

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A simultaneidade, o fato que desperta a curiosidade por ser tão imprevisível, é outro, e tem a duração de um centésimo.

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Isso, com 26 anos, programado para disputar as próximas olimpíadas, de Londres, em 2012

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Mostrando que o autor desse texto é humano, demasiadamente humano,

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Ou melhor, talvez seja. Talvez seja o caso de um deus contemporâneo, dentro de nossos padrões atuais, de um super-homem, que consegue superar todas as marcas estabelecidas antes dele, capaz de ser um generalista em uma época de técnicos  treinados para apertar um único botão. Estamos falando de Michael Fred Phelps.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

#foraRicardoTeixeira

Uma garçonete se aproximou e recolheu os copos. “O Lula me falava: ‘Eu não vejo essa Globo News porque só dá traço’”, disse, referindo-se à baixa audiência da emissora. “Então, esse uolsó dá traço. Quem lê o Lance? Oitenta mil pessoas? Traço! Quem vê essa espn? Traço!”
Ele concorda com um raciocínio que José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, teria feito no tempo em que dirigia a Rede Globo. Certa vez, falaram-lhe que um avião caíra e centenas de pessoas morreram. Boni teria dito que, se o Jornal Nacional não noticiasse, para todos os efeitos o avião não teria caído. “Portanto, só vou ficar preocupado, meu amor, quando sair no Jornal Nacional”, disse Teixeira.
O perfil de Ricardo Teixeira na "piauí" está incrível.

sábado, 16 de julho de 2011

O sentido da vida, da história e de outros conceitos vazios

Fui um dos que, um pouco depois da adolescência, caiu na armadilha de se perguntar qual era o sentido do mundo. Tal pergunta, como li certa vez em uma pequena biografia do Sidarta Gautama, que comprei na cidade de Mcleod Ganj, onde vive o Dalai Lama, não faz qualquer... sentido. É como se se juntasse diversas palavras aleatórias e colocasse uma interrogação ao fim. Claro que a frase "qual é o sentido do mundo?" é decodificável, todo mundo entende as palavras e o conjunto, mas ela não se aplica porque parte de um pressuposto errado, como se houvesse sentido no mundo - ou, ao menos, sentido universal, que fosse compartilhado por todas as pessoas.

O sentido - se é que existe - é respondido exatamente pela ética, aquele conjunto de regras pessoais e intransferíveis que cada um dos seres humanos carregam. Mesmos os mais "antiéticos". Não podemos confundir com a moral, que, a princípio se parece bastante com a ética: é o conjunto de regras sociais e compartilhadas entre os seres humanos, que pode ser claro e óbvio como as leis, ou sutil e passar quase despercebido como uma ação externa que atua na individualidade, como certas obrigações sociais que devemos cumprir.

Voltando à ética, ou melhor, ao "antiético": penso que este termo é contraditório, ou extremamente complexo, por si só. Ou não podemos ser contra a nossa ética, já que ela é a regra fundadora de nosso ser, e assim sendo, mesmo que o sujeito seja um ladrão que rouba a verba dos hospitais para a criancinhas órfãs, ele pode estar respeitando essa ética dele, o que o tornaria, nesse caso, ético; ou diríamos que para alguém ser antiético ele deveria desrespeitar essas regras internas, o que é tremendamente possível e mais comum do que podemos imaginar, basta considerar quantas pessoas trabalham em algo que não querem por necessidade ou, o que é pior, por uma vaidade. E aí, estaremos próximo de onde quero chegar.

O tema do "sentido" e, ampliando o seu aspecto, de "utilidade" desde sempre me fascinou. Se a vida não tem um "sentido" a priori, ou seja, pré-estabelecido, que deixe claro o que devemos fazer, como, por exemplo, existia no mundo gerido pela moral católica - que dizia que devíamos seguir a bíblia, os dez mandamentos, evitar os pecados, etc. - qual é a nossa utilidade? Para que servimos? Para que somos úteis? A verdade - palavra complicada, mas aqui usada apenas como vício de linguagem - é que, provavelmente, não temos qualquer utilidade.

De toda forma, o tema sempre me visita, independentemente de eu o procurar diretamente. É um filtro que tenho e que prioriza esse tipo de assunto. Ultimamente, por exemplo, venho pensando sobre a utilização de certas categorias, como a filosofia e a arte. Até agora, ainda não cheguei a qualquer conclusão sobre. Não precisamos, mas não conseguimos nos livrar delas. Principalmente dentro de nossa sociedade liberal - tenho urticárias da palavra "capitalista". Nessa semana, havia pensado que tinha encontrado um terceiro elemento dentro desse grupo de inúteis: a história. Lendo a introdução de um livro de artigos de teoria da história, os autores do texto colocam as três donzelas no mesmo barco de longevidade, dentro do contexto do que se convencionou chamar de sociedade ocidental. Nasceram razoavelmente ao mesmo tempo lá na Grécia; e a arte, em suas mais diferentes formas, e a história têm até musas inspiradoras - a filosofia, coitada, foi vista, inclusive, pós-Platão, como um artefato apenas intelectual, o que é um dos maiores defeitos que a tradição pode ter cometido.

De qualquer forma, já estava incluindo a história nesse grupinho fechado, considerando que responder à pergunta "Para que serve a história?" não é exatamente fácil. Ou se utiliza de outros frases-conceitos vazios ["para aprender com o passado a não repetir os erros no futuro"] ou se tenta justificar pelo viés da curiosidade sobre o passado, ou ainda argumentar que a lembrança, a condição para se inaugurar a história é inerente ao ser humano, portanto não se pode fugir dela [um raciocínio que me agrada, devo admitir]. Todo esse raciocínio sofreu um acidente quando uma amiga acrescentou sustança ao argumento inicial que eu tinha apresentado. Inclusive, atualizando o discurso para o nosso tempo.

Ela sugere que a história "serve" exatamente para que as pessoas aprendam com o passado a melhorar o futuro. Exemplos práticos, dados por ela: táticas de guerra e tratamentos de medicina. Os generais usam do instrumental da história para aprender como se eram travados os combates no passado e, assim, poder tentar criar novas ou melhores formas de matar. Por outro lado, os médicos também usam da história para aprender como eram feitos determinados procedimentos cirúrgicos, por exemplo. A história, bem ao modo da solução técnico-científica, tão cara aos nossos tempos, se transformou em uma técnica que auxilia as outras, que realmente importam. Assim como, aliás, já tentaram fazer com a filosofia, quando tentarem transformá-la numa nova psicologia. Ou com a arte, de modo até mais delicado, quando dão um status àquele que tem conhecimento da arte, que o coloca no patamar dos "cultos" [conceito dos mais vagos que conheço].

Por fim, um outro amigo lembrou que se entrarmos pelo viés da antropologia, descobrimos que todos grupos humanos pesquisados até hoje sempre tinham dois aspectos que sempre se repetem: tinham um grau de religiosidade e pintavam o corpo. Ambos, aliás, comportamentos completamente inúteis do ponto-de-vista estritamente da necessidade de existir, de sobrevivência. A religião, vá lá, é completamente "entendível": temos uma necessidade inerente de explicação - inclusive, demonstrada nesse texto, com a pergunta do sentido do mundo. E a mitologia - e a religião não é nada além de um conjunto de mitos - sempre serviu muito bem a esse propósito. Agora: tatuagem? Para que tatuagem? Embelezamento? [E aí, funcionaria como antípoda da arte, assim como é a religião da filosofia.] Símbolos religiosos, mitológicos? [E aí seria um apêndice da questão da religião.]  O que me faz concluir que o mundo, realmente, não faz mesmo qualquer sentido.

sábado, 9 de julho de 2011

Bergman como fã de Allen

Na reportagem do Lichote do "Segundo Caderno" hoje, há um trecho que passa quase despercebido, em meio às revelações de que o mestre Ingmar Bergman assistia a "Duro de matar" e outros filmes longe de seu universo típico. Na entrevista com outro sueco que conheceu de perto Bergman, há a informação que o cineasta autor de "Morangos silvestres" gostava de Woody Allen. Chamou-me* a atenção pelo motivo óbvio:  normalmente vemos declarações elogiosas no sentido inverso: do nova-iorquino ao nórdico. Esse novo caminho das frases favoráveis, portanto, são raras, menos conhecidas, ou até novidades. E também por uma questão pessoal: já escrevi uma monografia exatamente comparando as influências de Bergman em Allen.

Não quero dizer que o sueco era influenciado por Allen - mas, quando é que podemos controlar as influências? Como dizer onde o que é você termina e começa o outro? De qualquer maneira, não é essa intenção, apesar de achar que seria bem interessante pensar sob esse viés, se não na prática, ao mesmo na teoria: como seria uma relação entre pupilo e mestre em que houvesse a construção criativa de ambos os lados?

De qualquer maneira, a situação me lembrou de minha monografia, feita para conclusão da segunda faculdade, de jornalismo, chamada de "Woody Allen: a paródia do cinema de Bergman". Resumidamente, digo que a paródia é a [ou uma] proposta original [repare na contradição dos termos] dos artistas americanos [do norte, do centro e do sul]. A paródia, a "arte de segunda-mão", aquela que sabe que não produz o original, que se sabe periférica, que se sabe como regurgitante, apenas. Pense em Oswald de Andrade, que está em voga, por exemplo.

No livro "Woody Allen por Woody Allen", longamente citado no meu trabalho, o jornalista - sueco e amigo de Bergman - Stig Björkman faz uma longa entrevista com o nova-iorquino sobre a sua produção artística. Talvez o melhor momento para demonstrar como os dois se admiravam tão intensamente está numa passagem descrita por Allen do primeiro e - aparentemente, ou até o momento - único encontro dos dois.


Nunca tive contato com ele (Bergman) até filmar “Manhattan”. Liv Ullmann, que eu já tinha encontrado e sabia o quanto eu gostava de Bergman,, me avisou que ele estaria na cidade dentro de uma semana. Sugeriu que ela, eu, Bergman e a mulher dele jantássemos juntos. Liv me assegurou que ele também gostaria de se encontrar comigo. Assim, lá fui eu ao apartamento do hotel onde Bergman estava e jantamos. Tivemos uma conversa longa, bastante longa, que foi muito agradável. Conversamos sobre muitas, muitas coisas. Surpreendeu-me o fato de muitas coisas corriqueiras que me aconteceram também terem acontecido com ele, exatamente na mesma época. E ficamos conversando. Porém, na última vez que fui a Estocolmo, não pude estar com ele porque estava com as crianças. Contudo tivemos uma longa conversa pelo telefone que durou, provavelmente, umas duas horas. Ele tem uma conversa muito divertida. Mantivemos vários conversas telefônicas como esta, mas a única vez que tive contato, contato pessoal com ele, foi naquela noite no hotel em Nova York, aliás, uma noite das mais agradáveis. Engraçado como tantas coisas tolas acontecem com todos os cineastas, creio que é algo universal. Ele me contou que quando um filme dele entra em cartaz, o pessoal da produção telefona, imediatamente, contando tudo. E dizem: “Olha, a primeira exibição estava repleta e podemos predizer que o filme vai render mais dinheiro do que qualquer outro que você fez antes”. Isto também acontece comigo. As previsões são as mesmas. Tudo parece fantástico, mas depois, em cinco dias, todas as previsões otimistas desaparecem. Com ele é a mesma coisa (Björkman, 1992: 88).


O que é bom e sempre foi bom para mim sobre as criações dos dois - sem me alongar mais nesse já longo texto - é a capacidade de produzir filmes que são facilmente entendidos por qualquer pessoa. Talvez o espectador menos acostumado com o cinema mais calmo e contemplativo tenha dificuldades de se manter parado, apenas olhando todas as cenas e diálogos de Bergman, por exemplo. Ou não ache engraçado as piadas de Allen. Mas os dois não são artistas herméticos, que dificultam a entrada em seus mundos. Lá dentro, você pode se embrenhar e ir se aprofundando e captando detalhes e comentários mais e mais complexos. Mas a primeira leitura, aquela que podemos ter despreocupadamente, eles permitem a todos. A questão é que, após vê-los, essa despreocupação desaparece.

* essa construção me lembrou a primeira frase de "Moby Dick", sempre citada como uma das melhores da literatura em língua inglesa, mas que cuja tradução sempre me intrigou. A sentença é simples e qualquer pessoa com o menor domínio do inglês consegue entender: "Call me Ishmael". Agora, como traduzir isso? "Call me", sem considerar o contexto, pode ser tanto "Me chamo" ou "Me chamam". O problema é que a expressão começa a frase: devemos colocar o pronome antes, então, e desrespeitar uma das regras mais controversas da ortografia da língua portuguesa? E, ao colocar o pronome no lugar "correto" não estaria optando por uma "formalidade", que não é nem de perto o tom de todo o romance? Bom, deixo as questões sem resposta, propositalmente - porque não as tenho.