terça-feira, 13 de setembro de 2011

Salomés ou de como eu queria apenas desbloquear o celular, mas acabei na National Gallery

A minha missão era mole. Desbloquear um dos celulares que temos - o outro já era desbloqueado. Mas, se não temos a Uruguaiana para nos ajudar, onde vamos? Procurei uma loja da Vodafone perto de casa e descobri que no nosso centrinho não há. O poliça sugeriu que eu pegasse o ônibus 29 e saltava na Main Street - entrei no coletivo e fiquei esperando uma rua com esse nome aparecer. Até que eu percebi que talvez fosse "main" um substantivo comum. Acabei em Trafalgar Square.

Lá eu sabia, ao menos, que encontraria uma loja da Vodafone. Mas eu não sabia que a loja da Vodafone não faz esse tipo de serviço e que o atendente indicaria um amigo dele, que fica num estabelecimento muito do estranho. O cara, certamente, me roubou. Me cobrou 25 pounds. Disse que não tinha esse dinheiro e paguei 20. Se falasse que pagaria só 10, suspeito que ele também aceitaria - o cara era indiano. [Em pouco mais de 20 minutos que permaneci no lugar, vi eles enrolando uma coreana, cobrando um absurdo por um adaptador para uns espanhóis e armando o bote para uma brasileira.]

Além desse assalto à mão desarmada, ele falou para eu voltar em duas horas - provavelmente o tempo de ele levar num lugar mais barato e fazer o serviço. Foi aí que eu percebi uma faixa em frente à National Gallery: "free entrance". Como eu não tinha um pence, fui eu para lá.

Admito que tenho um pouco de implicância com museus, em geral. Há tanta gente em frente às telas que você fica perdido. Heidegger dizia que a obra deixa de ser de arte quando entra num museu para se transformar em objeto cultural. Tenho que concordar com ele. Por isso, costumo gostar mais de obras menos conhecidas, de pintores pouco famosos. São as que estão mais vazias, em que os caçadores de figurinhas artísticas ignoram completamente. Nesses lugares, posso ficar parado durante minutos, sem pensar em nada, me desligando, me transportando para a realidade daquele quadro à minha frente.

Uma das primeiras obras que eu fiquei impressionado foi "A filha de Herodias", de Sebastiano del Piombo [à esquerda e aqui]. Não tinha qualquer informação sobre o quadro, mas o olhar da moça me prendeu. Ela é Salomé, a famosa Salomé; ele, São João Batista. Segundo a bíblia, ela pediu a cabeça dele, porque ele caluniava sua mãe, a tal Herodias. São João Batista dizia que Herodias havia trocado Herodes Filipe, pelo seu irmão, Herodes Antipas. Há uma descrição de uma dança sensual em que Salomé teria seduzido o tipo, Antipas, em troca do assassinato do homem que batizou Jesus.

Eu não sabia nada disso e cheguei a pensar que ela fosse filha do primo de Jesus. Porque, na tela, não vemos um rosto de satisfação, mas algo invocado. Ela está com o semblante fechado e, eu arrisco dizer, contrariado, revoltada até. Não pela calúnia, me pareceu, mas pelo fato de ter assassinado um homem santo, um profeta. Como se tivesse obedecido a mãe contra a sua própria vontade. Há um vinco no rosto, e um vermelho nos olhos, bem no canto, próximo do nariz, que me fez pensar que ela teria chorado, chorado pela morte do Batista. Como se ela não tivesse compactuado com o pedido da mãe, mas fosse sua obrigação, uma obrigação de filha, segui-la. João Batista, por sua vez, quase sorri, como se soubesse que, apesar de morto, sua voz continuaria a repercutir.

Por acaso - ou não - fui andando - tinha ainda mais uma hora e meia antes de voltar para pegar o celular - e encontrei uma outra obra sobre a mesma passagem, mas agora de um nome da arte muito mais famoso: Michelangelo da Caravaggio, chamada "Salomé recebe a cabeça de João Batista" [ao lado e aqui]. Nesse caso, a legenda - e a imagem também - era[m] mais clara[s]. Salomé nem olha para o rosto do Batista. Ignora o presente, com um revirar de cabeça, que beira o nojo, olha para fora da tela, com um pouco de vergonha do que tinha feito. Se na obra de Piombo, Salomé encara o espectador, como se pedisse a atenção, nessa de Caravaggio, ela quer apenas sair da tela. Segura a bandeja, com a cabeça do Batista com a boca aberta, com desdém, empurrando para outra pessoa a segurar, ou a recebendo desesperadamente. A legenda dizia que era incomum esse tipo de pintura, em que Salomé é retratada desconfortável nessa situação. E basta conferir a passagem da Wikipedia da peça de Oscar Wilde para saber como as pessoas a enxergam como uma seguidora incontestável da mãe.
Por que não me olhas, Iocanaan [aquele que anuncia o Cristo, no caso, são João Batista]? Teus olhos, que eram terríveis, tão cheios de ódio e escárnio, estão fechados agora. Por que estão fechados? Abre-os! Ergue as pálpebras, Iocanaan! Por que não me olhas? Estás com medo de mim, Iocanaan, e por isso não me olhas? E a tua língua, que era como uma serpente vermelha expelindo veneno, não se move mais, nada diz agora, Iocanaan, aquela víbora vermelha que cuspilhava veneno contra mim? É estranho, não? Como é que a víbora vermelha já não se move?... Consideraste-me ninguém, Iocanaan. Desprezaste-me. Pronunciaste ignóbeis palavras contra mim. Trataste-me como uma meretriz, uma dissoluta, a mim, Salomé, filha de Herodíade, princesa da Judéia! Bem, Iocanaan, eu estou viva; mas tu estás morto e tua cabeça me pertence
A repetição de temas, até o início da era Moderna, não era um problema, pelo contrário. As mitologias nascem dessa revisita, dessa necessidade de contar diversas versões - até mesmo contraditórias - para os mesmos mitos. Agora, sofremos de uma febre de novidade, que se mostra inútil e infértil..

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