quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Comida e literatura


"Às vezes penso que cozinhar e escrever são bastante parecidos. Assim como há sujeito, verbo e objeto, eu divido os elementos da cozinha em três categorias: o principal, o acompanhamento e a ligação. Às vezes, você nem precisa utilizar um desses elementos, mas ele está ali, implícito. O principal – o sujeito –, normalmente, é uma carne – em suas mais variadas formas e nomes, inclusive, as que não são de origem animal, como a soja, ou alguns tipos de cogumelos.

Como o sujeito da frase, o principal é quem guia o caminho. O restante do prato – da oração – deve acompanhar sua toada. Não adianta ter uma carne gordurosa e um acompanhamento idem – um dos dois vai sair perdendo e não teremos a experiência inteira. Assim como um bom personagem deve mostrar um pouco de sua vida, e em outros momentos, apenas se apagar para que a ação continue. Outras vezes, o principal é mais delicado e é o acompanhamento – uma bela salada, ou um gratinado com um queijo grande – quem chama mais atenção. Rara, e, na minha opinião, infelizmente, porém, a ligação é quem chama a atenção da maioria.

A ligação, o verbo, a síntese de qualquer prato, de qualquer sentença, é onde mora o núcleo, a parte mais importante da refeição ou de uma frase, para mim. Se eu estudasse para ser uma cozinheira de verdade, uma chef, optaria por ser uma saucer, uma especialista em molhos, que controla os humores de todos os ingredientes, que conecta os dois lados da oração. Pode ser humilde e desaparecer no meio de carnes suculentas, ou pode ser o rei da operação e incrementar o mais sem graça dos macarrões, por exemplo.

Aliás, massa é um bom exemplo. Gosto mais das longas – mas aprecio um penne e um fusilli também. As longas, eu divido em duas categorias bem próprias [e, admito, um pouco escatológicas]: nematelmintos [como o espaguete, o meu preferido] e platelmintos [o ninho, por exemplo]. São, para mim, um acompanhamento que não tem principal. Os italianos, por conta disso, acredito, a colocam no “primo piatto”, mas eu não vejo como um problema me alimentar só de massa, sem um “principal”, um “secondo” vindo em seguida. E, assim, as massas dependem basicamente do molho para fazer o par. Digamos o ragu, que, no Brasil se costuma chamar genericamente de bolonhesa: o molho, a ligação, faz as vezes de principal, nesse caso.

Os verbos também mostram sua importância ao descobrirmos suas subdivisões. São de ligação ou de acordo com a sua transitividade: intransitivo, ou transitivo direto ou ainda indireto. Eles ordenam o restante da senteça. Se será objeto direto, indireto, ou se terá apenas um advérbio, ou nada, são auto-suficientes.
 “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”, já diria João, o Evangelhista, o que está sentado à direita de Jesus na “Última ceia” de Da Vinci, o mais novo dos apóstolos, logo no início do seu evangelho. Treze versículos à frente, ele acrescenta: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade.” Claro que está falando de Cristo. Verbo é a figura de linguagem para a mensagem, é metonímia para a história, para toda a tradição contada, falada, e também escrita. O verbo, indispensável. A ligação da literatura."

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