segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

A morte de deus

O que Nietzsche queria com o seu Zaratustra era escrever tão bem quanto Platão e criar um personagem tão forte quanto Jesus. Provavelmente sem saber, ele, que tinha anunciado a morte de Deus, queria fundar uma religião – ou, ao menos, um tipo novo de religião.

Hum. Acho que fui muito direta. Deixe-me tentar colocar isso em uma parábola.

*** 

O pastor morava em uma cabana no meio da vila. Era o responsável por todo o leite, a lã e a carne consumida pelos seus pares. Acordava de madrugada, ainda com o céu pegajoso, e ia cuidar de suas ovelhas, de seus carneiros e de seus cordeiros. Tinha nome para cada um deles e se sentia triste quando deveria matá-los. Ele mesmo não comia carne de carneiro. A única carne que comia era galinha, que dizia ser um bicho desmiolado. Ele morava sozinho, portanto o seu rebanho era mais que o seu sustento, era a sua família. Andava mais com os animais que com outras pessoas da vila, que achavam ele um pastor normal, que cuidava de sua subsistência do melhor jeito possível.

Após o inverno, começou uma praga que ele não sabia de onde vinha, nem como pará-la. E uma a uma, suas ovelhas, e um a um, seus carneiros foram morrendo, até o último cordeiro. Sempre do mesmo jeito. Como se asfixiados por mãos invisíveis. Caíam no chão e se estrebuchavam até o fim, como se lutassem até onde podiam para ficar vivos. O pastor se sentia impotente, incapaz, e chorava a morte de seus bichos, de sua vida.

Quando o último cordeiro morreu, ele resolveu se vingar. Ele tinha que se vingar para se sentir melhor. Ele tinha que passar adiante essa raiva que ele sentia dentro de si. E quem poderia ser o responsável por essas mortes todas, pelo fim da sua vida se não deus, ele próprio. Deus, que comandava todas as ações do mundo. Deus, ele sabia, todos sabiam, que vivia no cume das montanhas próximo à vila. Se ele controla todas as ações, o pastor pensou, então ele também é responsável pela morte de todo o meu rebanho. E isso não pode ficar assim. Não pode. Como eu vou viver agora? Os animais não faziam mal a ninguém, não podem morrer assim. Não podem. Eles têm que ser vingados.

O pastor vestiu umas roupas pesadas, de frio, porque na floresta as estações do ano não seguem a do restante do mundo, pegou uma enxada velha, que ele não usava há muitos anos, e entrou mata adentro, disposto a matar esse deus que tinha acabado com a sua vida.

Morador da vila desde que nascera, ele conhecia bem a floresta, mas não sabia exatamente onde encontraria deus. Ele sabia que deus habitava o topo de uma montanha. Dizem que é a mais alta, mas ele não sabia exatamente qual era a mais alta, todas pareciam do mesmo tamanho, exatamente da mesma altura. Resolveu começar pela que estava mais próxima e era de mais fácil acesso e ir depois para a que estivesse mais próxima e fosse mais fácil chegar e assim até o fim, até ter percorrido todas as montanhas ao redor da vila. Sabia que deus não podia estar na área de pastoreio, já que se estivesse, ele já o teria visto. Então já eliminou mentalmente um bom pedaço de terra de sua pesquisa.

Foi difícil, demorou mais do que ele esperava e o pastor quase perdeu a esperança, mas depois de um tempo, ele encontrou deus, numa noite brumosa. Vivia em uma caverna, no cume de uma montanha que ele nunca tinha visto, além de todos os outros morros. Estava de pé, como se o esperasse, segurando uma lanterna de óleo à sua frente, e um cajado na outra, olhando para o horizonte, vestido com uma túnica grande demais para o seu corpo velho, magro e alquebrado. Tinha uma barba enorme e os olhos profundos e cansados, de quem já viveu demais e conhecia tudo.

“Eu sei por que você veio aqui” – disse deus, olhando para o pastor, que estava à sua frente, um pouco intimidado, mas extremamente revoltado, revoltado com a morte de todo o seu rebanho, por estar em frente ao responsável por toda essa tragédia. “Eu estava esperando por você. Sabia que você viria, dia sim, ou dia não. E, para mim, não há diferença entre os dias.”

“Não adianta tentar diluir as minhas intenções!” – respondeu o pastor cheio de rancor.

“Eu não vou impedir o que você veio fazer. Na verdade, é o que eu mais desejo. Sabia que um dia eu seria responsabilizado por tudo e um dia você iria aparecer” – disse deus, calmamente, como se estivesse extenuado demais para poder se opor ao curso natural das coisas.

“Então, prepare-se!” – disse o pastor, nervoso, levantando a sua enxada.

“Eu me preparei a minha vida inteira por isso. É o que eu mais quero.”

O pastor titubeou um pouco, porque ficou intrigado com que o deus quis dizer com querer, desejar isso, chegou a cogitar que seria melhor, então, não matá-lo e castigá-lo com a pena da vida, mas estava tão revoltado que precisava descarregar a sua raiva em alguém, em algum culpado, e se deus estivesse à sua frente dizendo que queria isso, ele não se importaria de realizar o sonho dele, desde que o seu próprio também fosse realizado. O pastor bateu com força várias vezes, até que a revolta abandonasse a si, mas já nas primeiras batidas, sentiu que a vida tinha abandonado aquele corpo senil.

Ele se ajoelhou, na perna direita apenas, e, cansado pela travessia e pelo encontro, decidiu voltar apenas no dia seguinte. Dormiu na caverna de deus, agora morto, e quando acordou teve uma surpresa: havia um rebanho de cordeiros, carneiros e ovelhas logo do lado de fora! Não tão grande, nem tão bom quanto era o seu, mas um belo conjunto de animais! Ficou saltitante, achou que tinha sido agraciado por deus, por tê-lo matado, por ter interrompido o seu sofrimento, por ter feito a sua vontade. Conferiu se o rebanho pertencia a alguém, porque não era certo roubar, e, quando descobriu que os bichos estavam soltos, nessa área tão inóspita, tão estranha a carneiros e ovelhas, decidiu recolhê-los e trazê-los de volta para a sua vila.

Na vila, ele foi recebido com apreensão – os vilões não sabiam o que ia acontecer caso ele realmente matasse deus – seria o fim do mundo? Eles estariam condenados a sofrer todas as desgraças do mundo pela eternidade? Estariam amaldiçoados? – e ficaram esperando o pastor voltar ansiosamente.

Ao avistar-lhe, perguntaram:

“Onde está deus?”

“Deus está morto”, ele respondeu, rápido, confiante, como se soubesse que tinha feito o certo.

E uma onda de cochichos e comentários em baixa voz percorreu todos os presentes, assustados, nervosos, estranhos a esse fato.

“Mas o mundo não acabou?”

“E agora, o que acontece, o que devemos fazer?”

“De quem são esses carneiros e essas ovelhas?” – inquiriu um mais atento.

O pastor levantou a mão espalmada, à sua frente, pedindo por silêncio. Ele estava estranhamente calmo, os vilões pensaram, como pode estar calmo se ele acabou de matar deus? Como pode estar tranquilo, sabendo que ele abandonou a vila e deixou a vila abandonada?

“Deus está morto”, o pastor repetiu, para começar um discurso, “deus está morto e agora somos livres para fazer tudo o que quisermos fazer” – mais barulho entre os vilões.

“Mas agora podemos matar?”, perguntou um.

“Sempre puderam”, ele respondeu, “mas vão sofrer as consequências por isso.”

“Mas quem roubar a minha plantação não vai mais arder no inferno?”, inquiriu outro.

“Não, não vai, mas podemos expulsá-lo da vila por isso”, ele tentou sugerir.

“E o templo? E o sacerdote?”, questionou um terceiro, cheio de medo.

“Não são mais necessários. Podemos fechá-lo e dar uma função mais nobre para o pobre sacerdote, que perdeu o seu deus.”

“De quem são as ovelhas e os carneiros?”, insistiu o mais atento.

O pastor olhou para ele e sorriu um sorriso de confiança.

“São minhas, agora. Eu as encontrei no meio da floresta, logo depois de matar deus” – mais burburinho entre os vilões, e, antes que lhe perguntassem outra coisa, o pastor foi para a sua casa, prender os animais.

A partir desse dia, o pastor percebeu que ele começou a viver uma vida dupla. De dia, era o pastor dos animais, mas era ignorado pelos vilões que não acreditaram nele – a maioria –, tratado como um homem exótico, um lunático que tinha uma confiança exagerada e que iria pagar pelo que havia feito. Era um exilado em sua própria terra. De noite, ele era adorado pela ínfima minoria de aldeões que iam à sua casa, em busca de palavras de sabedoria, para resolver seus problemas, para escutar seus sermões. Depois de um tempo, o pastor não conseguia disfarçar que preferia sua vida noturna à diurna.

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