segunda-feira, 2 de abril de 2012

Voz interior

O nosso destino foi a minha área preferida do Rio. Não é a praia, que eu também gosto, nem qualquer das belezas naturais, que tornam a cidade única, mas o lugar que melhor guarda o passado, como se fosse o presente. Ao menos, um presente possível. Ou, simplesmente, um presente. Começamos a andar perto da Candelária, no fim da Presidente Antônio Carlos, até a Praça XV – ah, a Praça XV. Ficamos parados na Praça XV, do lado do Paço, perto do Chafariz do Carmo, construído pelo mestre Valentim, um dos únicos lugares de abastecimento de água em toda a cidade, lá pelo fim do século XVIII. A obra, curiosamente, ficou pronta em 1789 – o famoso ano de 1789, que derrubou o rei na França e que, ao fim da ainda mais famosa Revolução, trouxe Napoleão ao poder, que, por sua vez trouxe ao Brasil Dom João, que por sua vez, voltou e deixou o filho aqui, que por sua vez, declarou a independência do país, estabelecendo um império e depois voltou, deixando o filho, que era uma criança ainda e...

- No que você está pensando, xará? – me perguntou Marco Aurélio, interrompendo a minha progressão, e me fazendo despertar.

- Nada, nada, não. Estava viajando...

- Esse lugar é incrível, né?

- Bastante. As pessoas passam esbaforidas aqui, sem nem reparar no Paço. O Paço, caramba, que é incrível. Lembro a primeira vez que eu vi o Paço. Fiquei muito impressionado.

- É...

- As pessoas têm um pouco de vergonha do nosso passado, né.

- Certamente.

- E querem mudar as coisas com violência. Combater a violência com violência. Não parece muito inteligente. Só vai gerar uma resposta ainda mais violenta. Além disso, querem mudar uma ditadura para uma ditadura. Quem garante que será a melhor solução? Quem garante que a outra ditadura também não vai reprimir, como essa faz? Eu não sou a favor da ditadura, por favor, mas, quero deixar claro que não sou a favor de nenhuma ditadura.

- “Democracia é a pior forma de governo, com a exceção de todas as outras formas que foram tentadas de tempos em tempos”.

- É do Churchill, né?

- É.

- Pois então. Um conservador! Achar que o outro, que o diferente de você deve ser calado é, no mínimo, uma estupidez. Me parecem que todos estamos perdidos. Como crianças que querem brincar à vera com os adultos, mas não têm força para tanto.

- Parece que ouvem, mas não escutam, veem, mas não enxergam.

- Mateus capítulo 13, versículos 13 e 14 – disse uma senhora de cabelos branquinhos, encaracolados, com os olhos azuis, e a pele enrugada, que passava pelo nosso lado.

- Oi? – respondi, eu, intrigado, enquanto Marcos apenas sorria para a senhorinha.

- Em verdade, é um pouco diferente, pelo que eu me lembro. Deixe-me pegar aqui a minha bíblia...

- Senhora, nós não... – tentei começar a dizer algo, bem pré-fabricado, mas Marcos Aurélio me interrompeu, sem falar nada, apenas com um gesto da mão e o olhar e o sorriso ávidos para saber o que ela tinha a dizer. – Mas... – ainda tentei falar com ele, e ele apenas acenou com a cabeça em direção à velhinha, sem olhar para mim, como se disse que queria ouvi-la, e que eu não deveria interromper.

- Aqui está. Achei. Em Mateus, capítulo 13, versículo 13 e 14, Jesus diz: “Por isso, lhes falo por parábolas; porque, vendo, não vêem; e, ouvindo, não ouvem, nem entendem. De sorte que neles se cumpre a profecia de Isaías: Ouvireis com os ouvidos e de nenhum modo entendereis; vereis com os olhos e de nenhum modo percebereis.” O senhor Jesus Cristo tinha acabado de ser perguntado pelos apóstolos por que ele falava por parábolas, por que ele não era direto, e ele respondeu que nem todo mundo conseguiria entendê-lo se ele falasse diretamente. Mateus continua, numa parte que eu gosto muito, citando ainda o senhor Jesus Cristo: “Porque o coração deste povo está endurecido, de mau grado ouviram com os ouvidos e fecharam os olhos; para não suceder que vejam com os olhos, ouçam com os ouvidos, entendam com o coração, se convertam e sejam por mim curados. Bem-aventurados, porém, os vossos olhos, porque vêem; e os vossos ouvidos, porque ouvem.”

- Muito bonita passagem – diz Marcos Aurélio, antes que eu pudesse fazer qualquer comentário.

- Também acho – a velhinha respondeu. – Acho que ela se aplica a muitas outras coisas, como, aliás, uma boa parábola.

- Concordo plenamente – respondeu Marcos Aurélio, sorrindo, e monopolizando a atenção.

- Bom, tenho que ir. Se vocês quiserem saber mais sobre a bíblia, nós temos um grupo de discussão, eu e algumas amigas. Vou deixar com você o nosso endereço. – ela começou a rabiscar num pedaço de papel, que logo em seguida rasga e entrega a Marcos Aurélio – Tome. Muito bom falar com você.

- Obrigado – responde ele – Muito bom falar com você também.

Aquela senhorinha foi em direção às barcas, com uma agilidade impensável para a sua idade, enquanto nós dois a acompanhávamos à distância.

- Não entendo – disse eu para Marcos Aurélio – Por que você deixou que ela falasse sobre a bíblia, por que você não simplesmente a interrompeu?

Marcos Aurélio me olhou e sorriu o sorriso que ele sempre sorria quando tinha muita certeza do que tinha feito, e percebia que as pessoas em volta dele não tinham entendido bulhufas do que havia acontecido. Um sorriso de compreensão, de uma superioridade carinhosa, que ele queria compartilhar, que ele queria igualar os demais com ele. Um sorriso caloroso, que aproximava as pessoas, que era como um abraço, que dizia, estamos juntos, que dizia que não era um problema não ter entendido o que tinha acontecido. Eu, ainda perdido, tentando raciocinar, manter o meu ponto, seguir na minha conclusão, continuei, esbravejando, um pouco cego:

- “A religião é o ópio do povo”!

Ele se aproximou, me deu um abraço, de um braço só, e começou a caminhar, pela Praça XV em direção à Carioca.

- Que bom que nós sabemos que não somos diferentes deles. Que não temos qualquer sentimento de superioridade. E, se tivéssemos, a realidade nos demonstraria que não somos.

- O quê? Não to entendendo nada!

- Por que essa senhorinha não pode falar conosco? Por que ela não pode falar sobre religião?

- Foram os carolas que deram o golpe!

- Os mesmos carolas que diziam que comunista come criancinha, não?

- Isso! O povo, perdido, fica dominado pelas palavras dos padres que não querem perder o seu rebanho, não querem acabar com a miséria do povo!

- Nelson, Nelson, Nelson. Você está falando como eles!

- Oi?!

- Qual é o problema da religião?

- Ela nubla a visão das pessoas. Faz com que as pessoas não percebam a realidade.

- E qual é a realidade, xará? Qual é a realidade real?

- É do povo que sofre, é de...

[Interrompendo.]

- Meu chapa, não precisa usar as palavras que você aprendeu nas reuniões do DCE. Tente usar as suas próprias. Tente encontrar a sua própria voz, dentro de você, não tente repetir o que os outros já disseram tantas vezes que, agora, elas se transformaram em um slogan que quer ser verdade, pela repetição.

Fiquei intrigado, olhando para ele com um ponto de interrogação desenhado no meio do meu rosto, com a minha cabeça meio perdida, sem chegar a qualquer conclusão, como se tivesse deixado de seguir uma trilha, e agora estivesse no meio de um desses labirintos feitos de plantas, sem saber para onde ir, achando que todos os caminhos eram bem iguais, que todas as folhas fossem a única folha, repetida eternamente.

- Eu não entendo.

- Não existe um inimigo que devemos combater, fora de nós mesmos. Não existe um eles e nós, um eu e você. Somos uma única pessoa, como espécie, e somos, dentro de nossa individualidade, muitos, infinitos.

- Eu estou me sentindo confuso.

- A confusão, o caos são bons. Vêm daí as ideias mais incomuns.

- O que você quer dizer? O que a senhorinha religiosa tem a ver com isso?

- E se ela só quiser estudar a bíblia? Qual é a diferença dela para você?

- A bíblia é um livro que só conta mentiras!

- Tão religioso. Parece que você precisa de alguém para lhe guiar ainda.

- Bicho, to ficando na bronca, você não explica nada!

- Meu chapa, o que estou querendo dizer é que a religião, assim como o ateísmo –essa forma de religião estranha– não são maneiras de você excluir ninguém, ou gostar automaticamente de alguém. Esse comportamento é digno das ditaduras, onde você é permitido gostar de alguma coisa, ou é discriminado caso se interesse por outras. Pense livre, pense aberto, abra a sua cabeça, aceite o outro, “ame o próximo como a si mesmo”.

- Até tu, Marcos Aurélio?

- Eu estou sugerindo apenas que você acabe com os seus preconceitos. Tente parar de julgar as pessoas antes que elas se apresentem para você, antes que você possa ter sua própria opinião. Não siga as grandes máximas que são ditas em todos os lugares, como se fossem verdades. Tente escutar o que você fala.

- Você continua a dizer para eu escutar a minha voz interior, mas eu devo ser mudo, no meu interior. Ou surdo, no meu exterior.

[Sorrindo.]

- Talvez você apenas não esteja prestando a devida atenção para a sua voz interior.

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