quinta-feira, 21 de junho de 2012

Irlandeses e ingleses

A Irlanda é um país que faz um belo contraponto à Inglaterra. No que a vizinha tem de opulência, riqueza, grandiosidade, a Irlanda tem de delicadeza, intimidade, companheirismo. Dublin e London, as cidades principais, representam bem esse contraste. A primeira tem 500 mil habitantes, a segunda, quase 8 milhões. Londres é a capital do mundo, talvez mais cosmopolita que Nova York, enquanto Dublin é uma cidade pequena, com todas as vantagens e desvantagens que isso pode ter.

Mas se pensarmos com outros critérios, ficamos com algumas dúvidas em relação à superioridade de Londres. Um dos meus favoritos é o literário. É difícil comparar elementos tão qualitativos, tão subjetivos, tão pessoais. Lembro uma vez de o diretor Jorge Furtado chamar um festival de cinema de competição entre elefantes e geladeiras - o que é melhor? Cada um tem uma opinião diversa. Mas, se pegarmos um critério técnico, por assim dizer, algo que se pode comparar, como o prêmio Nobel de literatura, é possível mostrar que a Irlanda pode fazer frente  à Inglaterra.

A lista de escritores que tinham cidadania britânica e ganharam o prêmio é extensa, tem  dez nomes - enquanto os irlandeses têm "apenas" quatro láureas. Mas comparemos os nomes. Os britânicos receberam o prêmio primeiro com Kipling. Apesar de grande defensor das ideias do império britânico, inclusive tendo sofrido por isso, Rudyard Kipling nasceu na Índia, na então Bombaim. Sua primeira língua, inclusive, foi o hindi. Mesmo que seja apenas um cidadão britânico com tudo o que nós associamos a ele, não podemos esquecer que ele é filho de uma política expansionista da Inglaterra - que é onde eu quero chegar, daqui a pouco.


Em seguida, vem  Galsworthy, cuja principal obra é a saga Forsyte - não muito conhecida do outro lado do Atlântico. Depois, é a vez de  T.S. Eliot, americano de nascimento que assumiu a cidadania britânica - que também explica muita coisa. Após, vem Bertrand Russel, grande filósofo e inglês até o último ancestral, que fez um trabalho monumental escrevendo "Uma história da filosofia ocidental" - mas nenhum trabalho literário ficcional. Em seguida é a vez de  Winston Churchill, e eu fico pensando se o prêmio foi literário ou político. De qualquer forma, Churchill também escreveu um trabalho gigantesco sobre a História do povo inglês - e, novamente, nenhum trabalho literário ficcional.

O próximo da lista é Elias Canetti, um búlgaro que escrevia em alemão, e eu me pergunto se ele deveria entrar nessa lista. O seguinte era inglês e bastante literário-ficcional, para compensar:  William Golding. Depois vem  V. S. Naipaul, e lembramos novamente do império colonial, de Trinidad Tobago e da Índia.  Harold Pinter é o seguinte. Além de inglês, londrino, de Hackney. Mas com ancestrais judeus. A lista se encerra com  Doris Lessing que, adivinhem, nasceu na então Pérsia, e viveu boa parte da vida no Zimbábue.

Já a lista dos irlandeses quase dispensa apresentações: W. B. Yeats, G. B. Shaw, Beckett e  Seamus Heaney - talvez o único menos conhecido da lista.

O que isso prova? Nada, mas podemos especular algumas coisas. A Inglaterra conseguiu tanta divulgação por conta do seu poderia bélico, da sua expansão econômica, do seu grande vício em colonizar e exportar o seu ponto-de-vista para outros. A Irlanda, por sua vez, sofreu com esse expansionismo britânico - tanto é que só conseguiu sua independência em 1921 - e hoje é, nitidamente, um país na periferia do capitalismo - para citar uma expressão conhecida por nós brasileiros.

Os ingleses se aproveitaram de sua força dominadora e sugaram talentos de todos os cantos por onde passaram, Índia, Caribe, Oriente Médio, África. Ou se impuseram, se fizeram importantes, apenas por historiar o mundo [ocidental] ou eles próprios. Ou foram tão imponentes que serviram de chamariz para povos do mundo inteiro.

Mesmo os irlandeses tinham dificuldades de viver na sua ilha, consideradas por alguns provincial. Beckett nega até a língua inglesa e escreve basicamente em francês [fazendo ele próprio a tradução para o inglês]. Shaw vive durante boa parte da sua vida em Londres.

É outro irlandês, porém, que escreve, talvez, a melhor definição sobre a relação entre os dois povos. James Joyce, cujo "Ulysses" é considerado por muitos [principalmente os norte-americanos] o melhor livro escrito em língua inglesa do século XX, fala, via seu possível alter ego Stephen Dedalus, logo no início da sua obra monumental :

"--It is a symbol of Irish art. The cracked looking-glass of a servant ".

Acho que resume tudo.

ps. Sobre Irlanda, Irlanda x Inglaterra e Joyce, leia também:
- "Retrato de Dublin quando Bloomsday "
- "Dublinenses "
- Irlandeses e eleição em Londres
- "'Once': uma vez é impossível "

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