domingo, 14 de outubro de 2012

A leitura precoce

Uma grande dúvida atual: por que, num mundo cada vez mais utilitarista, ainda há elementos completamente contrários a uma "utilidade", de acordo com o processo mais simplista do termo, de proporcionar algum lucro, em qualquer moeda que se valha? Por que, por exemplo, ainda existe esse aspecto da vida que aparentemente é completamente sem aplicação e que chamamos, por falta de nome melhor, arte? [Um dia, não hoje, seria bom falar sobre a supervalorização, no bom e no mau sentido, desse termo.]

A resposta é igualmente simplista: porque, de alguma forma, a arte é útil. E continuando no argumento simplista, especulo: sua principal utilidade é a do entretenimento. E os indivíduos precisam de entretenimento, assim como precisam sanar suas outras necessidades ditas básicas. É um argumento tão batido que bastaria citar aquele verso da música dos Titãs ["A gente não quer só comida / A gente quer comida, diversão e arte"] para mostrar que o óbvio já tinha sido dito.

Esse ponto é apenas a introdução. Esse texto nasceu de um post de Wagner Brenner, no Update or die, em que ele que se autointitulava um "leitor, desde que me entendo por gente", mas pedia ajuda porque atualmente não conseguia mais ler. Ler livros, grandes, que não embalem logo no início. O texto é bem interessante, bem mesmo, porque retrata uma geração de leitores compulsivos, de internet, mas que não conseguem se ater a um texto que não os recompense logo de cara. Recompensa, acho eu, é o termo aqui.

Com uma leitura mais longa, mais demorada, que não entregue o prazer logo de início, há a necessidade de, com o perdão da figura, se subir um morro primeiro, antes de ver o horizonte. Há uma necessidade de enfrentar outros humores que não só a satisfação. É preciso quebrar uma força de atrito, que, como as aulinhas de física nos ensinaram, é sempre superior na estática que no movimento. Deve-se encarar uma parte que podemos apelidar para facilitar o processo de "chata" para depois, talvez, encontrar o lado "bom". Talvez, porque no fundo nada garante que você vá gostar do livro ao fim, apenas pode ser que haja uma recompensa. Talvez.

Na "leitura de internet", a recompensa, talvez em menor intensidade, mas mais frequente, deve ser quase imediata, se não um link te leva a outra janela, o control+tab te transporta a outra aba, e já se foi a oportunidade do primeiro texto. Este leitor atual recorre, provavelmente, a um maior número de peças de leituras, fragmentadas, para suprir sua necessidade de prazer. Esse entretenimento, que já descobrimos que é necessário, indispensável, vem de outras fontes, mais "fáceis", cujo coeficiente de atrito [para continuar na metáfora física] é bem menor.

Essa nova forma de leitura é melhor ou pior que a antiga? Nem uma nem outra, é diferente. Qualquer outra conclusão, me parece, é dar um valor a uma ou outra leitura que não se tem de início, de antemão. Se o fim é apenas esse entretenimento, os meios pelos quais você vai chegar lá, levando em conta, claro, os elementos éticos de se viver em sociedade, não importam. Qualquer entretenimento é pessoal, e, portanto, cada indivíduo deveria descobrir a forma de encontrá-lo - e se apenas isso acontecesse, já teríamos um belo passo para o autoconhecimento.

O único porém se dá na forma como ao priorizarmos consciente ou inconscientemente uma dessas leituras em detrimento da outra perdemos uma das capacidades próprias ao homem que poderíamos desenvolver. Por exemplo: se por um lado essa leitura em "cacos" [para usar uma expressão do Brenner] te mostra formatos novos de interpretação, com o hiperlink, a circularidade, a referência, o conhecimento generalizado, por outro, se perde a capacidade de concentração, o contato com a história - e com a História -, e se desenvolve uma espécie de ansiedade que te tenta a abarcar o máximo possível de informações - e prazeres -, mas que pode desaguar em uma frustração por se admitir incapaz de tamanha obra.

Novamente, me parece, é o caso da tentativa de se eliminar as partes "chatas" da vida para ficar apenas com as "boas" - como se isso fosse algo possível. Na verdade, são as partes "chatas" que demonstram quais são as boas, por contraste. É o enfrentar o marasmo para saber que haverá algo ao fim que dará o seu significado. Como disse muito melhor Hermano Vianna logo após a Flip desse ano: "alguns dos espetáculos mais marcantes da minha vida, ou alguns livros que mais amei, foram de uma chatice avassaladora – e só atravessando vastos desertos de tédio (pois sou muito disciplinado) consegui perceber suas belezas."

Uma recordação pessoal talvez dê o tom do que eu quero dizer. Lembro de eu perguntando a minha mãe, quando ainda muito pequeno, porque haviam as pessoas ruins no mundo. Ela, com a sua sabedoria simples, me respondia que elas existiam para que nós soubéssemos quem eram os bons.

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