sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Início, meio e fim de 'Deus e o diabo na terra do sol'


Por anos, evitei assistir a "Deus e o diabo na terra do sol" [acima, na íntegra] por puro preconceito contra Glauber Rocha. Como todo preconceito, a probabilidade de ele estar completamente errado é muito grande. Eu esperava uma versão sertaneja de "Terra em transe", filme que veio logo depois na filmografia de Glauber, e que eu acho assim-assim. Estava preparado para um estilo à Godard, de conexões sem muitas explicações, cenas perdidas, pontas soltas. O que eu encontrei foi um filme com cabeça-tronco-e-membros. Todos nos lugares que você espera achar.

Melhor que isso. Um filme que, apesar de todas as dificuldades de produção [algumas cenas de violência envelheceram muito mal], é bastante bonito. A cada cena, aparentemente, havia a preocupação de fazer algo belo, algo que passasse mais que o simples registro de atores. Isso sem contar com a edição, principalmente do famoso - e repetido - encontro entre Corisco e Antônio das Mortes [que elegância de Maurício do Valle!]. E a dinâmica dos personagens, que vão entrando e saindo do filme,  aplicando uma velocidade que pode fazer falta aos filmes desse período [década de 1960].

O roteiro faz uma homenagem às tradições nordestinas do cantador, do cordel. Conta com uma versão histórica-ficcional do Nordeste, de uma época que parece parada no tempo, mas que assusta ao nos lembrarmos que aconteceu apenas há pouco mais de cem anos. Há referência a Antônio Conselheiro, Padre Cícero e outros beatos, vistos como salvadores de um povo sofrido. Há citações do império e de como a república tinha acabado com esse sonho de um típico enviado de Deus na terra. Há a lembrança de que os cangaceiros [como o Corisco acima citado] era uma lei dentro de um lugar sem-lei.

Isso tudo sem qualquer benevolência ou maniqueísmo. Ninguém é só Deus ou só o diabo, apesar das interpretações tentarem colocar o profeta negro Sebastião como "Deus" e Corisco como "diabo". Mesmo que sejam, são representações tortas, perdidas dentro de um espaço isolado, psicologicamente modificados, como se estivessem em uma reação química, pelo sol desta terra. Ninguém é só bom ou mau, como, inclusive, é descrito Lampião: um homem grande, mas que era bem pequeno às vezes. Como é todo homem, aliás.

Glauber, me parece, se apropria de inúmeras referências [não pude deixar de pensar em "Grande Sertão: Veredas" nem de "Os sertões", por exemplo, e que, acado de descobrir, foram referências mesmo], deglute tudo, e as retrabalha para criar um filme, um cinema novo, que pensa o seu [nosso] povo, o seu país. Sem preconceito.

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