domingo, 24 de março de 2013

A metempsicose em 'Ulysses'

Um dos temas [é muito difícil dizer qual é o tema] de "Ulysses", ao menos um assunto bastante citado, é a metempsicose [como já vimos aqui] - termo genérico para a tal transmigração da alma. É um assunto complexo, muitas vezes tido como muito irracional, religioso, esotérico, em uma palavra. Por que então a questão seria abordada por um dos livros considerados mais complexos do século XX? Não seria uma contradição entre a robustez do livro e a quase infantilidade do tema? Não seria, nem é.

Harry Blamires, no livro "The new bloomsday book", faz uma sugestão interessante para explicar a utilização do tema por Joyce. Afirma que a fixação do personagem de Leopold Bloom pela metempsicose é uma antecipação do que vai acontecer no último capítulo da obra, quando a narrativa sai do ponto-de-vista de Bloom e vai para o de Molly, sua esposa. Ou seja, a "alma" da narrativa transmigra. As citações anteriores são como piscadelas que Joyce dá para o leitor, o avisando, o preparando para o que virá a seguir.

Apesar de bem interessante, essa explicação não é a única interpretação da quantidade de citações ao termo.

Peter Gay, em "Modernismo", fala sobre como Nietzsche havia previsto que a psicologia substituiria o papel que durante muito tempo foi da filosofia. A literatura, como qualquer outra representação, espelho do tempo, não ficou de fora dessa mudança de moda. O monologue intérieur é, provavelmente, o grande representante desse movimento. Em vez de, ou além de, se mostrar o que acontece fora do homem, se mergulha dentro do próprio personagem e descreve o que e como ele pensa, pulando de galho em galho dos links internos e pessoais.

Gay sugere "Os loureiros estão cortados", do francês Edouard Dujardin, do fim do século XIX, como o marco inicial desse processo. Foi o próprio Dujardin, que era mais conhecido como editor que como escritor, inclusive, quem cunhou a tal expressão "monólogo interior". Pouco lido, Dujardin quase não é citado hoje em dia quando se pensa na grande história da literatura mundial. Mas, entre os seus poucos leitores, estava um de peso: Joyce, que, segundo Gay, chegou a escrever uma dedicatória em seu "Ulysses" para Dujardin, se chamando de "ladrão impenitente".

O monologue intérieur, que ficou mais conhecido com Joyce como fluxo de consciência [stream of consciousness], é o outro grande tema para a metempsicose. O que o autor irlandês quer, com a sua sucessão encadeada de pedaços de pensamentos, cacos de memórias, descrição imediata das situações do momento, tudo misturado sem muita explicação, com qualquer reflexo de contextualização sendo sorvido como se fosse a última gota d'água do deserto, ele quer não apenas que mergulhemos no consciente e no inconsciente do seu personagem judeu homem-comum, mas, mais que isso, ele quer que nós sejamos Bloom. Joyce propõe que nós incorporemos a alma de Leopold Bloom. Só assim, imagino, podemos acompanhar seus saltos de informação, aparentemente sem qualquer relação entre os assuntos.

ps. Adivinha quem aparece logo na primeira página do outro citado grande clássico do modernismo do século XX, inclusive por conta do fluxo de consciência, À la recherche du temps perdu, do Proust? Ela mesma: "Puis elle commençait à me devenir inintelligible, comme après la métempsycose les pensées d’une existence antérieure" [grifo meu] [na minha tradução de Fernando Py: "Depois, principiava a me parecer ininteligível, como após a metempsicose, as ideias de uma existência anterior"]. Coincidência?

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