segunda-feira, 13 de maio de 2013

A fuga dos deuses

Como explica Benedito Nunes, em “Crivo de papel”, num primeiro momento da filosofia de Heidegger, ele se diz favorável à ideia de uma filosofia apartada de deus, ou uma filosofia, em tese, ateia, simplesmente para dar vazão à sua preocupação fenomenológica, ou a uma visão que seria “apenas” fenomenológica, de se ater às questões materiais, ou melhor, factíveis, factuais, relativas ao que “existe”. Portanto, não nega, em princípio e/ou necessariamente, a existência de deus, mas não o considera como o seu principal tema de estudo ou de foco de pensamento. Nesse primeiro momento, assim sendo, Heidegger vedaria a participação da fé cristã. Mas, de acordo com Nunes, essa atitude ateística de Heidegger problematiza a fé - porque não explica nem acaba com a existência do deus, apenas o coloca em suspenso -, e aponta para como a ideia do deus hebraico-cristão penetrou na concepção do homem, como nós o conhecemos atualmente, ou o Dasein, na terminologia heideggeriana.

A questão de Deus vem depois do problema do Ser e do Tempo na trajetória de pensamento de Heidegger, diz Nunes. Como se o alemão precisasse primeiro entender o que ou quem é o Dasein para depois estudar o, nas próprias palavras de Heidegger, o Ser-maior. E a questão não é, para Nunes, a existência ou não de Deus, mas a relação do Dasein com Deus: "Gottesverhältnis" é a palavra usada por Heidegger, algo como “relacionamento com deus”. "Trata-se de saber o que, depois do esclarecimento ontológico, significa Deus, que existe na vida do homem, seja polarizando a religião, objeto de fé e culto, seja simples ideia, pressentimento ou alvo de negação"1.

Para Nunes, Deus está dentro da filosofia, e não há como escapar dele. O próprio Heidegger admite a importância de Deus dentro de seu olhar sobre metafísica contido nos seus volumes sobre Nietzsche (escritos de 1936 a 1946), quando diz no seu capítulo sobre a concepção de cosmologia e psicologia de Nietzsche que a “metafísica ocidental é teológica, mesmo quando se opõe à teologia da igreja”. Dentro da interpretação de Nunes sobre Heidegger, Deus é o "arché", o princípio do Ser, mas como ente supremo.

O problema da Metafísica – e tratando a Metafísica como a trajetória da filosofia ocidental - é exatamente separar o ente do Ser, explica Nunes interpretando o texto “Überwindung der Methaphysik” de Heidegger. Esse problema começa com o primeiro grego que se tornou filósofo ao perguntar sobre o ente, quando na verdade queria saber o que era o Ser, e se mantém até hoje, exatamente seguindo esse mesmo processo paradoxal, em que um se esconde e se confunde - se encobre, na linguagem de Heidegger - no outro.

Segundo Nunes, o ateísmo de Heidegger responsabiliza o cristianismo pelo niilismo, porque ao se aliar à filosofia grega, se aliou também à Metafísica. Porque, ao pensarem o ente, em vez do Ser contradiz e confunde o pensamento com a fé. Como se dissesse que ao focar na "razão", que é a origem da Metafísica platônica-aristotélica, não poderia abordar, não haveria espaço para sugerir exatamente o seu oposto.

Cristo foi a figura que torna a "razão" elemento central na religião. Ao encarnar, tornar-se palavra, homem, sua trajetória foi elemento de interpretação, logo, da razão, o que abriu o caminho para o processo que veio a dar no desencantamento com o mundo. Nunes fala na "saída do religioso", com o processo de cristianização: a perda da "fé" como elemento central. Seria a fé, no sentido amplo, da crença, a única forma possível para se enxergar o Ser, o verdadeiro Ser das coisas? Seria necessário usar outros olhos?

A cristianização desencanta o mundo, começa uma tentativa de resposta direta Nunes. Conduz, por meio dessa valorização do logos, da "razão", ao "desvalorização de todos os valores" (como diz Nietzsche, pela interpretação de Heidegger, sobre o niilismo). A substituição, ou como Nunes chama, derivação da interpretação de Deus em outros grandes ícones, ou em outros deuses, como [exemplos dele] "Felicidade, Progresso, Cultura, Civilização" tendem ao niilismo [no sentido de falta sentido], porque são escolhas dadas pela "razão", pelo logos, não é algo que vem de "dentro", da "emoção", da "Vontade" ou "Vontade de potência", ou do "Ser". Com a racionalização, o deus vira imagem, eco de um passado, cujo som não mais se escuta, mas se tenta acreditar, "perde o sagrado", como escreve Nunes, sobre o Entgötterung (desdivinização) e a Flucht der Götter: a fuga dos deuses. E isso acontece quando o Ser não é mais encarado, nem considerado. Quando a preocupação com o ente é a única importância, que, como explica Nunes, se manifesta "na essência da técnica, Gestell", que o torna um bem a ser explorado. A racionalização superlativa. "Esquecido o ser, esfuma-se o sagrado", escreve Nunes.

1NUNES, 1999 / 31

Um comentário:

Marina disse...

Bom!