sábado, 8 de junho de 2013

A razão e a vontade como problemas

O sujeito tendeu, nos últimos séculos, a sujeitar a si mesmo. Heidegger cita o "ego", da fórmula cartesiana de "ego cogito" como exemplo para isso. Quando Descartes mostrou que o homem existiria ao tomar consciência da própria razão, deu ao homem o poder de controlar, de sujeitar a sua própria existência, e, consequentemente, sujeitar o que quer que fosse. O resultado disso, segundo o Heidegger, é sujeição do mundo ao homem, o mundo se transforma em objeto do homem, perde o seu Ser, que não é visto pelo sujeito, e se transformando em ente.

O que isso quer dizer? Que o homem ao se tornar senhor de si, sem um deus para obedecer / seguir, transforma o mundo em seu objeto. A terra se torna um objeto incondicional – nunca mais teríamos contato com o seu Ser. A Natureza, por sua vez, se torna o objeto da tecnologia, apenas provendo os recursos necessários, sem nunca também mostrar o seu próprio Ser. O homem se coloca no centro de um mundo, numa posição que era de deus, mas sem o poder que deus tinha. Deus também legislava. E mesmo que legislasse de acordo com princípios controversos, tinha uma importância para todos. O homem, não. É único, individual, sem alcance para o mundo.

Uma das consequências desse processo seria o fim da filosofia como a conhecemos, como doutrina e imagem da cultura, como a linguagem da verdade. Mais ou menos o mesmo tom da entrevista de Heidegger para a revista Der Spiegel.

Essa dominação do mundo, segundo Heidegger, é consequência da Vontade de potência, mas que nunca é entendida dessa maneira. Porque essa luta por dominação sobre a terra, essa era da subjetividade está direcionando para o consumo. Uma cobiça para dar vazão à razão, quase uma forma de compensar os anos de sujeição. Por isso, explica Heidegger, é indispensável se tornar consciente da vontade-que-deseja além da vontade de potência. Não é controlar a vontade, nem determinar os seus limites, mas saber, avaliar ao menos suas consequências para não se tornar um escravo da própria vontade. Porque a vontade vai querer sempre mais. E é importante ter alguma noção se é realmente um desejo da vontade ou simplesmente um vício que se repete.

"'O grande meio-dia'”, escreve Heidegger, “é o tempo do mais brilhoso brilho, a saber, da consciência de que a incondicionalidade, e em cada respeito, se transformou consciente de si mesmo, como aquele saber que consiste em deliberadamente desejar a vontade de potência como o Ser-do-que-quer-que-for."1

A citação ao "grande meio-dia" se refere provavelmente a um trecho do “Crepúsculo dos ídolos” em que Nietzsche narra a trajetória da metafísica desde Platão até ele mesmo, passando por Kant, utilizando a metáfora da passagem da escuridão noturna à claridade do dia, como passando, segundo os seus critérios, dos períodos na História, desde a criação da metafísica platônica, culminando, ao "grande meio-dia", no seu (de Nietzsche) momento histórico, em que essa metafísica não faria mais sentido. São seis passos identificados, que demonstrariam, nas palavras de Nietzsche, “como o mundo 'verdadeiro' terminou por se tornar uma fábula”. No último passo, Nietzsche escreve que com a supressão do mundo verdadeiro, ou seja, com o fim de uma tentativa metafísica de se querer um mundo ideal, fora da nossa realidade, imaginado por Platão e seguido pelos cristãos (ao menos), também se quebraria o mundo aparente. Ou seja, não haveria mais uma divisão entre verdade e aparência. Para existir a metafísica, ou esse tipo de metafísica que dominou nossa forma de pensar durante milênios, é necessário ter esses dois termos, o real e o imaginado, o aqui e o lá, o aparente e o ideal. Sem um deles, o outro não consegue existir, porque seria apenas um espelhamento do primeiro.

Heidegger cita o momento mais brilhoso do brilho, o meio-dia, em que a luz do sol incinde quase verticalmente, no “instante da sombra mais curta”, como escreve Nietzsche. É o momento da razão mais profunda, a “incondicionalidade”, ou seja, o não ter condições, não haver um algo, um alguém, um Ser como parâmetro, isto é, é saber que deus, em que formato ele tiver ou estiver, está morto. É o momento em que se sabe que não há uma diferença entre mundo real e aparente. É também nesse instante em que o sentimento tomou consciência, despertou, que nasce um novo desejo, algo que impulsiona, que "deliberadamente” deseja a vontade de potência, de maneira quase aprisionadora. Dessa maneira, seguindo o raciocínio de Heidegger, o homem resiste a se subjugar a qualquer objetivação.

Heidegger pergunta como consequência desse raciocínio, em que só todo sujeito subjetiva, ninguém é objeto, o que é, isto é Ser agora, agora que o "domínio da Vontade de potência está amanhecendo" e que essa abertura está se tornando uma função da vontade, está existindo em função da vontade, ou seja, sendo subjugada, sujeitada, objetificada. O que é, o que está acontecendo com o Ser neste momento de dominação? "O Ser está sendo transformado em um valor", ele responde.  

Ele não fica satisfeito. Quer saber se o Ser pode ser melhor avaliado do que simplesmente ser um valor, porque ele acredita que, desta forma, ele já estaria degradado. Porque estaria, de certa maneira, condicionado à vontade de potência, como se dependente da vontade de potência. Ou mesmo subjugada, ou ainda sendo em função da vontade de potência. Dessa forma, o Ser estaria despojado da "dignidade de sua essência". A vontade de potência, nesse sentido, apenas substituiria deus, sem qualquer vantagem para o Ser. Nesse sentido, o Ser não seria a vontade de potência, mas algo além. E a vontade de potência seria algo que, porque não consciente, poderia dominar o ser. Nas palavras de Heidegger, este processo oblitera a experiência do Ser.


1Heidegger, 1977 / 102, em tradução livre

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