quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Beatriz Sarlo, Borges e os russos

Talvez tenha sido coincidência, uma série de acontecimentos que levou à crítica cultural argentina - apresentada como a maior intelectual latino-americana - Beatriz Sarlo ficar conosco durante tanto tempo. Para falar a verdade, não foi tanto tempo assim. Apenas um dia e meio, mas foi intenso. Tivemos ao menos três conversas longas, inclusive uma grande entrevista que vai sair na "Revista de História da Biblioteca Nacional" em algum momento. E falamos de muitos assuntos: Brasil contemporâneo, mercado editorial, racismo, música, Vinicius, subjetividade, cinema argentino independente, Lula, Antônio Candido, história, literatura e, claro, Borges.

Sarlo é autora de Borges, un escritor en las orillas, um livro em que ela mostra todo o caráter argentino do escritor que é muito conhecido pelo seu cosmopolitismo. Em um grande resumo, ela explica que Borges consegue criar uma chave de interpretação para o seu país - mais ou menos como Roberto Schwarz, de quem ela é muito amiga, fez com Machado de Assis em Um mestre na periferia do capitalismo.

Isso a catapulta à maior conhecedora / especialista de Borges do mundo? Improvável saber. Não há uma escala para medir isso. De toda forma, ela é a mais famosa pensadora argentina, abordando um dos principais temas da Argentina. Porque, como ela diz, "nenhum argentino chega a Borges", ele já está lá. Daí, pudemos conversar vários aspectos borgianos, mas um, que sempre me intrigou, foi o principal para mim.

É curioso que um escritor onívoro como Borges tenha deixado de lado toda uma tradição literária importante, como é inegavelmente a russa. Não há em seus comentários quase nenhuma citação a Dostoiévski. Nunca li nada dele sobre Tolstói, ou mesmo Tchekhov - outro contista como Borges.

"No conjunto de livros de Borges que está na Biblioteca Nacional da Argentina", contou Beatriz, "Só há um livro de Dostoiévski, com poucas anotações, e um de Tolstói, com nenhuma marcação. Nada de Tcheckhov", diz ela, lembrando que Borges gostava de escrever, com a sua letra miúda, nos livros que lia.

Sempre interpretei essa aversão de Borges pelos russos - aversão que me influenciou bastante - como uma diferença de temperamento. Borges, muito influenciado pelos pragmáticos e aventureiros anglo-saxões, não teria muita paciência com os sofredores e profundos eslavos. Era uma questão de gosto, simplesmente. Beatriz confirmou.

"Alguns contos de Dostoiévski, porém, eu acredito que ele poderia gostar, se tivesse lido", explicou ela, deixando claro que eram contos específicos. "Mas eles não estavam traduzidos quando ele estava vivo ainda." E foi então que ela contou algo que eu senti com bastante similaridade: a tradução antiga para o espanhol, via o francês, era horrível. Pomposa, exageradamente barroca. Açucarava o que não precisava de doçura. Mais ou menos o que havia no Brasil, antes da razoavelmente recente onda de traduções direta do russo aqui.

Beatriz contou que ela mesma só entendeu Dostoiévski quando leu uma tradução feita por uma russa-alemã que nasceu na pátria de Fiódor e cresceu na de Goethe e que, segundo ela, é excelente. Borges, que lia em alemão, também não teve a sorte de ter essas traduções. Dei mole e não anotei o nome da senhora tradutora que fez o milagre, mas segundo Beatriz, que aprendeu o alemão com quase 60 anos, vale a pena encarar mais uma língua, e logo que língua!, para ler essas traduções.

Ano que vem, Beatriz, ano que vem.

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