sexta-feira, 4 de outubro de 2013

O vira-lata


I
Era apenas uma bola de pelo sujo, jogado no canto da rua, na esquina de onde Camila mora. Ela passou por esta bola e o bicho fez um barulho tão miado que ela pensou que fosse um gato. Estava indo para o trabalho, atrasada como sempre, mexendo no cabelo, como sempre. Não gosta de cachorros, prefere os gatos, jamais teve um bicho de estimação, a mãe não deixava, era muito pelo, a irmã era alérgica, eles viajavam muito, quem iria cuidar dele?, mas algo a atraiu naquele bichinho tão pequeno. Ele – depois ela descobriu que “ele” era “ele”, mesmo – olhou para ela de um jeito que a desconcertou. Não era o olhar, o olho, simplesmente, o glóbulo ocular, que é quase tão frio como vidro, mas o seu ao redor, o supercílio, a sobrancelha, o focinho, estava tão triste, tão perdido. Não, não era isso: o cachorro estava machucado, muito machucado. Queria ajuda. Pedia por uma mão que o acolhesse, trouxesse ao colo. Camila tinha passado diante, em frente, pé ante pé, marchando em direção ao ponto, e em seguida ao trabalho, reta, sem pestanejar, e quando ouviu o miado canino, virou o rosto, e a sua velocidade caiu bruscamente até que em duas passadas ela parou, sem nem perceber que ela tinha parado. Algo a tinha feito parar, a tinha hipnotizado, desligado o seu computador de navegação interna, seu piloto-automático, e tocado em um pedaço lá de dentro, bem orgânico, um sino que reverbera no restante do corpo e nos faz ser parte de um todo maior, nos torna apenas pequenos e orgulhosos seres naturais, algo que a consciência não alcança, apenas é, independente da forma como encaramos. Aquele olhar de sobrancelhas arqueadas, respiração intermitente, orelhas caídas, mexeu no nervo interno da emoção dela e a congelou de maneira quente. Tirou ela de um mundo em que estava inserida e a trouxe para outro, em que ela não mais tinha os pés no chão ou o horizonte à sua frente. A primeira reação, ainda viciada, foi olhar para os dois lados. Estava com uma calça jeans e uma camisa social branca e uma pequena echarpe azul, com detalhes em vermelho, que combinava com os sapatos vermelhos, e na hora que ela cogitou pela primeira levar o cachorro para a casa, para o seu pequeno apartamento, ela voltou para o mundo automático e se lembrou da camisa, bem passada, perfumada, e será que vai sujá-la?, mas o cãozinho fez logo um novo muxoxo, e novamente ela se desarmou e já estava com o bichinho no colo, era tão pequenininho!, tão pequenininho, quando veio aqui para casa, ela vai dizer sempre. Ela se agachou, perto do bichinho, antes de pegá-lo ainda, ele que pela primeira vez colocou a língua para fora, e ela não sabia o que fazer, será que ele morde?, será que ele tem alguma doença?, ela tinha medo, um medo bobo, que tinha sido introjetado na sua veia, por anos de convívio familiar, e como ela deveria ser sempre bonita, cheirosa e elegante, para conseguir o que ela quisesse. Tomou coragem, depois que o bicho se abaixou mais, e acariciou a cabeça do cão, qual é o seu nome?, perguntou, como se ele pudesse responder, mas era natural, automático, espontâneo, e ela, então, riu, e ela cogitou levá-lo para casa, ficou refletindo, e começou a discussão interna que ela estava totalmente acostumada, e que ela sabia quem venceria, como sempre, entre o Certo e o Errado, e o Certo dizia que ela não poderia tomar conta desse bicho que ela estava apenas com pena, mas a pena não iria resolver o problema, ela deu agora para ter pena de bicho, vai se transformar em uma dessas mulheres solteironas com centenas de gatos e a casa fedendo a mofo, ela não tem como trazer todos os bichos para casa, enquanto o Errado, dessa vez, não falou nada, apenas se incorporou, assumiu a forma de braços, pernas, cabeça, tronco e se transformou na própria Camila que afagava o cãozinho e logo o segurou no colo, e viu que ele estava machucado, como se ele tivesse sido mordido por um cão maior, e ela, talvez pela primeira vez, deixou o Certo falando sozinho, se levantou e voltou para casa, mesmo que estivesse, já, atrasada.




II
Gabo – em homenagem ao seu escritor preferido – estava com vários machucados de mordidas de outros cães. Ficou em tratamento durante um bom tempo, com pomadas cicatrizantes, bandagens, visitas ao veterinário, banho – banho! – o primeiro banho foi uma sujeira: o bicho se mexia, não ficava quieto, querendo se libertar daquelas mãos que o obrigavam a se molhar na água gelada do tanque, e água com sabão e sujeira voou por toda a área de serviço, e depois ela pisou com o chinelo da rua, o cachorrinho saiu em disparada, quando liberado, e sua casa – tão normalmente limpa – virou uma lama. Camila ainda gastou um dinheirão no tratamento e na compra de acessórios na pet shop – “o mordedor é ótimo para filhotes”, aconselhou a vendedora, uma senhora velhinha que tinha aspecto de ter tido muitos cachorros na vida – um dinheirão que ela não estava podendo gastar, já que tinha se endividado com o pagamento do IPTU, do IPVA e com a viagem que fez na virada do ano. Mas alguma coisa naquele cãozinho... Ela não sabia o que era, mas tinha alguma coisa... Ela simplesmente tinha que ajudá-lo. O primeiro dia, ou melhor, a primeira noite foi a pior. Gabo chorava muito e insistentemente. Ela imaginava que ele estava sentindo muita dor e se doía também, porque não sabia bem o que fazer. Pensou em pegar um analgésico qualquer, diluir em água e dar para o bicho, mas ficou com receio de matar o bichinho. Ouviu de um amigo químico que era possível matar uma pessoa com paracetamol. E muita gente era alérgico a ácido acetilsalicílico. Imagine! Gabo poderia ter um troço e ela nunca iria se perdoar.

Nos primeiros dias, nem conseguiu trabalhar direito. Era funcionária do RH de uma empresa de petróleo. Trabalhava na área de cursos, mas também fazia alguns eventos. Deu sorte que nesta semana não tinha nenhum curso agendado, apenas a festa dos aniversariantes do mês, que já era parte da rotina, e não precisava tomar muito o tempo dela. Era uma mulher razoavelmente experiente, com seus 29 anos, e já quase dez na empresa, contando o estágio. Chegava ao escritório e queria logo voltar para casa. Ficava com a cabeça presa em Gabo. Naquele monte de pelos ruivos-acastanhados-cobres-marrom-vermelho... Ele não tinha raça, mas parecia uma mistura de Labrador Retriever com Cocker Spaniel. O porte do primeiro, a cor e os pelos do segundo. Ela queria logo voltar para casa para ver como seu bichinho estava, para passar a pomada, para trocar o jornal, para colocar mais comida, ver como estava a água. Pegá-lo no colo, ficar com ele ali, enquanto assistia a mais um episódio de sua série favorita na TV a cabo. Conseguiu escapar quase todos os dias mais cedo, para desespero do Certo que a olhou com reprovação, prometeu parar de falar com ela, mas logo estava de volta. Comentou com os amigos sobre o cachorrinho, ninguém entendeu direito. “Você?”, se espantaram em uníssono. Uma, a Dóris que trabalhava com ela no RH e almoçava junto no restaurante do seu Manel, até comentou sobre um cara novo, da área de extração, mas Camila  estava estranha. Ela apenas sorria, como uma criança pega fazendo uma diabrura. E não explicava nada. Não saberia explicar. Não tinha ideia do motivo por que ela estava fazendo isso. Apenas se sentia bem, estranhamente bem. O Certo, do alto de sua pose de autoridade, olhava para ela, fazendo tsc tsc tsc. E dizia que ela estava apenas arranjando um motivo para se ocupar. E que ela sofreria ainda mais quando o bicho morresse, porque ele não era eterno, ela sabia, e que isso não era a solução, mas Camila não queria nem saber. Ela nem percebia que estava ignorando o Certo, apenas estava. Era como se a voz do Certo tivesse se perdido entre uma cacofonia, e essa cama de vários sons desencontrados fosse agora o seu repouso, e a única voz que conseguia se sobressair nesse nosso ambiente, porque não era exatamente uma voz, não era exatamente uma comunicação verbal, mas algo mais orgânico, era o Errado, que tinha se vestido com sua própria pele e agora era ela, exatamente ela.

III
Em questão de semanas o bichinho já estava todo saltitante pela casa. Roendo pés de móveis, fazendo xixi e cocô nos lugares menos apropriados, estraçalhando o jornal e o espalhando pela casa. A irmã mais nova, que acabou comprando um cachorro quando ficou mais velha, um cão d’água português, indicado para quem tem alergia, lhe indicou usar um jornal enrolado para educar o cachorrinho. Todas as vezes que ele fizesse algo errado, bateria com o jornal, que, segundo ela, faz só barulho, não machuca, e esfregaria o focinho do cachorro no lugar onde ele deveria fazer cocô e xixi. Mas não conseguiu. Não conseguiu bater com jornal, nem, muito menos, esfregar o focinho dele. Ele era tão pequenininho, tão delicado, tão... Não conseguiu. E passava um tempo limpando a casa, assim que chegava do trabalho. Era trabalho após trabalho. Mas ela estava tão... ela não saberia denominar, nem estava preocupada em denominar, simplesmente não pensava nisso. Estava tranquila. Calma, feliz. Ocupava um espaço na sua estante de tempo, um espaço que ela nem tinha reparado que estava vazio. Era bom ter alguém dependendo dela. Era bom se sentir útil. Era bom fazer algo que ela não queria, imediatamente. Era bom se doar, abrir mão de ser apenas ela, agir em prol dela, era bom ter alguém, além dela. Era bom descobrir que podia gostar de alguém, mesmo que fosse um cachorrinho minúsculo, que odiava ração e saltitava balançando o rabo desesperadamente quando ela chegava do trabalho. Era bom ter alguém a esperando em casa, e que se transformava, virava um cão-elétrico quando a via. Era bom ter que voltar para casa. Era bom não apenas deitar no sofá e ver mais um episódio da série. Não ter que comer sorvete, inventar uma receita nova. Não ter que sair com as amigas, que nem estavam tão amigas assim, ultimamente – todas elas casadas, todas querendo arranjar um namorado para ela, todas achando que foi uma ótima ideia ela ter um cãozinho de companhia, mas, na verdade, acreditando que agora ela se admitiu, realmente, como uma solteirona encalhada. Era bom não ser julgada, não ser avaliada, nem criticada porque engordou um pouco, ou muito, porque exagerou no doce, porque estava de TPM. Ter alguém com quem conversar, mesmo que não a respondesse. Era bom ter alguém para amar, incondicionalmente – e ser correspondida.



IV
Como sói acontecer, a vida conjunta de Gabo e Camila entrou na rotina. O que não é, necessariamente, ruim, apenas repetitivo. Acordavam sempre cedo, comiam pouco variadamente nas mesmas horas, ela ia trabalhar, ele fica esticado, sem fazer nada, dormiam depois do filme que acabava sempre por volta das 23h. Gabo cresceu e se tornou um cachorro muito bonito, com uma pelagem muito sedosa, o focinho longo, porte forte, postura elegante, além de manso. Raramente latia, raramente estranhava alguém ou alguma coisa. Era um cachorro tranquilo, como a sua dona.  Ela adorava passear com ele pela vizinhança, vê-lo interagir com outros cachorros. Assim que chegava à pracinha perto de casa, soltava a coleira – sempre um pouco apreensiva, com o Certo, já um pouco resignado (não é curioso como o Certo sempre se adapta às situações e sempre tem uma opinião sobre tudo, e sempre sabe o que é o certo a fazer?) lhe enchendo o ouvido: e se ele fugisse? Quem garante que ele não vai fugir? Ele é um bicho, não age racionalmente. Ele pode correr para a rua e ser atropelado. Vai ser uma morte horrível e... – e via o bicho zarpar em direção ao gramado louco de felicidade. Ele pulava de um lado para outro, abaixava o focinho, levantava o quadril, rolava para lá e para cá, se esfregava na grama, se coçava com as patas traseiras, se coçava com as patas dianteiras, corria atrás do osso de brinquedo, trazia de volta para Camila arremessar novamente, cheirava tudo, tudo, tudo, todos os cantos, todos os cachorros, todos os detalhes dos cachorros que se aproximavam dele, os donos dos cachorros, a bola que vinha quicando, a criança que vinha atrás da bola, a moça carregando a sacola do supermercado, a sacola do supermercado, o rapaz passando no skate, a mãe e a filha voltando do colégio... Não havia momento do dia que Gabo ficasse mais obviamente feliz. Nem quando ela chegava em casa. Nem... Gabo fazia uma festa com ela, sempre, cotidianamente todos os dias, mas nada se comparava como ele ficava incontrolavelmente feliz quando ela o soltava da coleira na pracinha. Camila até ficava, depois de um tempo, um pouco enciumada. Não iria admitir isso jamais – e nem tinha para quem admitir – mas ela achava estranho, ou melhor, ela sentia inveja dessa felicidade toda que ele sentia no momento em que havia o corte de contato entre ela e ele. Ela se sentia, um pouco, desprezada, como se não importasse o que ela fizesse, ele ainda assim gostaria mais de ficar ali, correndo para um lado para outro, sem qualquer razão, do que ficar com ela. Ela se sentia traída, para falar a verdade mais íntima, que ela nunca admitira, nem para si mesma, e nessa hora o Certo coloca as duas mãos sobre os seus ombros, sem dizer uma única palavra, e sorria, enquanto Camila dizia que, de qualquer forma, continuaria a trazer o bichinho para lá. Se ela pudesse lhe proporcionar essa felicidade, esse prazer que não cabe em si, ela faria isso, sempre – e ouvia o balançar de cabeça, de aprovação, do Certo, logo atrás dela. Era o certo a fazer, ela sabia.

V
O estágio seguinte à rotina se chama displicência. Quando os movimentos se tornam parte integrante do dia a dia, em formato de repetição monótona e enfadonha. Quando, novamente, a vida volta a ser gerida pelo grande e insofismável piloto-automático, que transforma a vida em uma grande roda que estraçalha a individualidade, e segue em frente, porque tem que seguir em frente, porque tem que. Não que Camila estivesse achando a vida monótona, entediante – ela não pensava sobre isso. Nesse momento, o Certo acompanhava Camila por onde ela estivesse, como melhor amigo, enquanto o Errado tentava, de todas as maneiras, chamar a atenção de Camila, mas ela o ignorava porque, bem, pelo óbvio, porque ele é Errado. Em princípio. Por princípio. Não adiantava o Errado mostrar álbuns coloridos, com toda uma gama de sabores, porque ele parecia um traficante de desenho animado da década em que a TV não era colorida. Recusar o Errado era o certo.

Mantinha o contato com Gabo, mas não mais deixava o cachorro dormir com ela em cima da cama. Os pelos a incomodavam. Ela não era alérgica, mas não queria acordar comendo pelos. Não tinha mais tanta paciência, mas ele não era de fazer nada muito errado. Então, não brigava com ele. Aliás, era Gabo quem ainda lhe despertava algum tipo de vontade genuína, quando trazia o osso para que ela arremessasse, ou quando enfiava o focinho debaixo do pé dela e fazia cócegas. Ela, agora, até achava curioso quando ele mordia e levava para ela a coleira, numa clara indicação de que queria passear. O trabalho, para piorar, estava lhe deixando muito estressada. Muitos cursos para organizar. Além disso, um rapaz do departamento pessoal foi mandado embora e agora ela é que tinha que comunicar as pessoas do procedimento burocrático, quando eram demitidos. E ela não tinha talento para isso. Não conseguia lidar com a tristeza das pessoas que tinham acabado de perder o emprego. Uma vez um homem de 52 anos chorou na frente dela. Não falou nada, apenas chorou, chorou, de soluçar. Depois, pediu desculpas, estava envergonhado. Estava perdido. Não tinha esperança sobre o que iria fazer. Foi um corte no departamento, e ele foi escolhido porque não tinha filhos. Só por isso. Foi o argumento que lhe deram, ao menos. Camila engoliu a seco e tentou procurar uma palavra que pudesse fazer com que a vida de homem, solteiro, sozinho, melhorasse, mas só pensava que se fosse com ela, ela também estaria perdida. Sem conseguir dizer nada, num ato impensado, esticou a mão e tocou na mão dele, que se assustou e olhou para ela, interrompeu o choro, e o instante congelou para os dois. Houve algum tipo de conexão ali. Eles estavam no mesmo lugar, distante do restante do mundo. Ele não era feio. Tudo bem que ela não gostava de bigode, mas nem reparou no bigode.

O homem foi embora, sem que ela pudesse pronunciar qualquer palavra além de “aqui está o seu número do PIS”, ou “esse é o procedimento para a retirada do FGTS”. Mas, assim que ele saiu, ela correu atrás do arquivo dele e descobriu seu telefone, endereço, tipo sanguíneo, tudo. Ficou olhando para aquela ficha se sentindo uma culpada – ela, em tese, não poderia roubar essas informações para uso pessoal. Mas ela estava sendo muito certinha, disse no seu ouvido o Errado. E ela aceitou, enfim, algumas palavras do Errado. Ela não faria qualquer mal com essas informações. Ligaria para ele, só. Ligaria para ele? Ela pegaria o telefone dela, de casa, ou celular?, e ligaria, discaria cada um dos números para falar com ele? E o que falaria com o senhor... Jorge Edson Silva Mendes? Não ligaria. Claro que não. Então, nem é exatamente uso de informação restrita. Isso não é um problema, já está decido. Ela já decidiu isso, não precisa voltar a isso. Estamos discutindo – ela falou com o Certo e o Errado – sobre eu ligar ou não para ele. E eu não vou ligar. Disse ela, ecoando uma sugestão do Certo. O Certo era uma figura estranhíssima. Parecia o crítico de comida francês do “Ratatouille”, antes de ele comer o ratatouille. O Errado não tinha uma figura tão clara. Por que o Certo era tão feio? Será que é porque se importar com a aparência é errado? Não sabe se ela se perguntou ou se foi uma pergunta do Certo, dando uma indireta a ela. O Certo, agora, então, estaria incentivando a ela a ligar? Não, não é bem isso, é que... Alguém veio falar com ela e ela se desligou desse diálogo para atender.

À noite, porém, antes de dormir, deixou o cartão onde anotara os telefones de Jorge Edson ao lado da cama. Antes, ficou olhando para ele, segurando na outra mão o telefone sem fio da casa. Ficou nessa posição por alguns segundos, enquanto sua mente era o sítio de uma grande discussão que a deixaria com dor de cabeça. Ao fim, mandou todo mundo calar a boca e ligou para Jorge Edson, mas quando ele atendeu, desligou, com o coração sobressaltado. Resolvera dormir. Como se conseguisse. Como se... Deveria ligar outra vez ou não? Não tinha uma resposta clara, não tinha onde basear suas opiniões, o Certo e o Errado estavam a confundindo na discussão deles. Ela queria, mas não queria. Ou queria, mas não sabia se queria, mesmo. Estava dividida, e não se escutava realmente. Quem era a sua voz, quem a representava, de onde viria a ordem que ela deveria seguir? Qual seria o seu tom, com que palavras... havia, novamente, uma cacofonia, só que agora, o volume era muito alto e a estava deixando enlouquecida e ela não queria mais ouvir, queria sair, queria silenciar isso, fazê-las parar. Sem pensar nada, num ímpeto, se levantou e ao se levantar não reparou que Gabo estava logo embaixo, ao lado da cama, bem ao alcance do pé dela e pisou com força na patinha dianteira do bichinho, que deu um latido esganiçado, de quem sofreu muita dor, e que a lembrou o latido miado de quando o conheceu, e ela, ao perceber que pisou, que pisou com todo o seu peso na patinha de Gabo, deu um pulo de volta à cama, como se tivesse uma mola, assustada, com medo de ter quebrado a patinha, e Gabo, Gabo correu para o canto do quarto, e ela, coração disparado, meu deus, meu deus, eu pisei no Gabo, eu pisei no Gabo, ela vai em direção ao cãozinho que pela primeira vez, desde que ela o viu, pequenininho, quase só uma bola de pelo, quando cabia em apenas uma mão sua, Gabo, aquele cachorrinho que agora é um cão grande e ferido, Gabo rosnou para ela e avançou para ela, com os dentes à mostra, como se fosse um lobo chefiando uma matilha, protegendo sua ninhada. “Desculpa, Gabo, desculpa, mil desculpa, perdão, desculpa”, enfileira Camila, para o seu cachorro, na tentativa de tirar de sobre os seus ombros as duas toneladas de saco de culpa que se instalaram ali. Repentinamente começou a sentir ódio de si porque tinha pensado em ligar para Jorge Edson, porque tinha ficado na dúvida, enquanto ela não reparou em Gabo, que é quem ela deveria se importar, Gabo, que agora está no canto, que agora a odeia, com toda a razão, porque ela pisou nele, pisou nele, como se fosse uma barata, será que quebrou o osso? Será que quebrou? Como se conserta, será que dá para consertar? Eu vou tratar de você, pensa ou diz, não sabe ao certo, porque ela só repete “Desculpa, desculpa, desculpa” para o cachorro, na tentativa de que ele parasse de rosnar para ela todas as vezes que ela chegava perto. Decidiu, depois, que ela iria ver o que tinha acontecido, e se ela fosse mordida, ela mereceria, ela tinha pisado na pata dele, ele pode mordê-la, ele agora pode se vingar. Ela se aproxima e Gabo late em sua direção, como se ela fosse sua maior inimiga, mas quando ela fica muito próxima, ele abaixa a cabeça, como se finalmente a tivesse reconhecido, como se até então, tivesse se confundido, como se ele não tivesse sido ele, e começa a lambê-la e ela se abaixa, se senta do lado dele, e deixa que a lambe, a cara, o pescoço, toda, e começa a chorar, um choro miúdo, pequeno, que não é exatamente um choro, mas um extravasamento, uma liberação do que estava preso, e o cachorro a lambe, a lambe, lambe-lambe-lambe e continua, e começa a explorar outras partes da carne de Camila até que ela não percebe o que acontecia e acontece, acontece o que ela não esperava que aconteceria e acontece, acontece, acontece mesmo.



VI
A pata não se fraturou, Camila pisou muito na pontinha, que tem muitas articulações e se adaptaram, à medida do possível, ao seu peso. Mas machucou muito. A veterinária teve que raspar o pelo em volta, e foi difícil controlar Gabo, que se mexia muito, ela teve que aplicar uma injeção para acalmá-lo à força, e fazer um curativo grande, que deixava Gabo com uma espécie de botinha.

“Você vai ficar bem”, dizia Camila, ao saírem, ele no colo dela, da veterinária, “Você vai ficar bem. Lembra de quando você veio aqui para casa? Quando você era pequenininho, e também estava todo machucado, lembra?” O cachorro parece ignorá-la, com a língua para fora, olhando para um horizonte canino em preto e branco, enquanto ela vai falando, para si mesma, sem perceber que falava sozinha.

Em casa, Gabo experimenta a nova patinha e manca muito. Não tem qualquer confiança naquela bota de esparadrapos que protege a pata ferida. Camila, ainda carregando os dois sacos de culpa, troca a água do cachorro, coloca mais comida, a comida que ele mais gostava, uma mistura de feijão, arroz e carne seca, e tenta procurar algo a mais que pudesse fazer. Quando ela percebe que não há mais nada, fica olhando para ele, numa ternura grande, que não tinha mais espaço dentro dela e explode num sorriso, que se transfere para um riso, e quase termina numa gargalhada. De alguma maneira, ela tinha voltado ao início, ela tinha novamente vontade de só ficar em casa cuidado do cãozinho.

Vai para o trabalho, culpadíssima, por deixar Gabo sozinho, mas, como no início, consegue uma desculpa para sair mais cedo. Quando ela chega em casa, uma surpresa: não há qualquer festa para ela. Aliás, Gabo nem aparece. Ela vai atrás dele, o chamando pelo nome, e vai encontrando pedaços da bandagem pelo caminho. No quarto, sobre a cama, está Gabo. Ele havia arrancado todo o esparadrapo e arranhado toda a cicatrização, com os dentes ou com a outra patinha. Ele estava sangrando sobre a cama e sujando tudo. “GABO!”, ela grita revoltada, “O que você fez!? Olha a bagunça que você fez!?” Ela volta à área de serviço, enrola um jornal e volta para bater nele. É a primeira vez que ela bate nele, mas ela não se dá conta disso, apenas quer bater naquele cachorro que sujou todo o quarto dela, que ainda acabou com todo o curativo. E ela bate com toda a força que tem, várias e várias vezes. Gabo se encolhe todo, fica acuado, vai para a cabeceira, e suja o travesseiro de Camila, e ela fica ainda mais revoltada: “GABO!”, ela continua a bater, e o cachorro se espreme, até ela se cansar. Decide dormir na sala e resolver o quarto no dia seguinte.

VII
Nos dias que se seguiram, Gabo insiste em tirar todos os dias a bandagem e comer a pata. Não adiantava ela bater nele. Ele simplesmente não ficava com a bandagem. Tentou deixar sem o esparadrapo e foi pior: Gabo comeu um dos seus dedinhos. Levou na veterinária, que fez um curativo grande, que parecia impenetrável, mas aconteceu exatamente a mesma coisa. Gabo não queria ficar com a proteção. Era uma retaliação, ela imaginava, era uma forma de me punir. Gabo agora, também, insistia em arranhar a porta com a pata boa. Passava todo o seu tempo à porta, ignorando sua cama, ignorando Camila, apenas arranhando a porta. Não adiantava Camila tentar colocá-lo em outro lugar: ele voltava para a porta. Não adiantava brigar com ele. Ele ficava no mesmo lugar. Não mudava. Era um protesto pacífico, insistente, que minava as forças de Camila, como se fosse uma pequena infiltração que ia crescendo de pressão. Camila tinha que tomar cuidado, quando abria a porta porque, todas as vezes que ela abria a porta, ele saía correndo, mancando. Desde que ele se machucou, ela não o tinha levado à praça. Principalmente agora, sem a bandagem, tinha medo de que a situação piorasse, que o machucado inflamasse mais. Mas parecia que não haveria alternativa. Ficou quieta, prendendo a respiração, como se tivesse entrado num vácuo mental. Escutou um zumbido, como o som de espera de telefone, mas algumas oitavas acima.

Ela teria que tirá-lo de casa. Ela sabia qual era o risco que corriam – ela e ele. Sabia o que provavelmente iria acontecer. Isso amoleceu um pouco suas pernas. Respirou fundo, tentou escutar algo dentro de si, mas há muito só ouvia o eco do silêncio. Ar que entra, ar que sai. Fechou os olhos. Abriu os olhos. Olhou para frente, para o nada, para a parede em branco. Não tinha alternativa. Era acompanhar o autoflagelo ou isso. Pegou a coleira. Gabo não abanou o rabo, mas ficou desperto, bem mais que em todos os últimos dias. Acompanhava cada movimento dela, como se pudesse sentir o cheiro do medo dela. Respirando fundo, ela foi até ele. Viu que a pata estava bem inflamada. Colocou a coleira num canto, pegou Gabo no colo e saiu.
A praça estava estranhamente vazia. Como se estivesse se preparando para ficar mais sinistra, para apertar mais o coração de Camila, para deixá-la ainda mais na dúvida. Sentou-se no banco que ela sempre sentava, com Gabo em seu colo. Segurou o focinho do cachorro e se aproximou do seu rosto. Olhou nos olhos do bichos, tentando desvendar algo que passava dentro da cabeça daquele cachorro. O bicho, entretanto, desviou o olhar, puxando a cabeça para olhar para o outro lado. Algo já tinha sido rompido há muito tempo. Ela parou de segurar a cabeça dele, o deixou solto, mas ele ficou parado. Ela o colocou no gramado, ele capengando deu dois passos à frente. Ela voltou para o banco, quando o primeiro soluço tremeu todo o seu corpo. O bicho testou dois passos adiante. Parou, virou a cabeça, como se pedisse autorização. Ela não fez nada. Ele deu mais dois, e outros dois, e mais, e não virou mais, até que entrou numa sombra no canto da praça, e passou a grade e sumiu por completo.
O choro convulsionou Camila que gritava em lágrimas.

VIII

Depois de se recompor, Camila voltou para casa, arrastando os pés, abraçada, de cada lado do corpo, pelo Certo, à direita, e o Errado, à esquerda.

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