terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Ser e / ou não ser

Ouvi dizer que o paradigma dessa nossa atual modernidade esgarçada - exagerada e, ao mesmo tempo, gasta - não seria mais o complexo de Édipo, ou Electra, dependendo do sexo, em que devemos "superar" os nossos grandes "marcos regulatórios". Seria uma espécie de complexo de Hamlet, em que ficamos na dúvida sobre ser ou não ser. Eu, debaixo da minha ignorância, adicionaria que há uma solução para essa questão. Podemos simplesmente ser e não ser. O famoso trecho da peça:
Ser ou não ser... Eis a questão. Que é mais nobre para a alma: suportar os dardos e arremessos do fado sempre adverso, ou armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim tentando resistir-lhes? Morrer... dormir... mais nada... Imaginar que um sono põe remate aos sofrimentos do coração e aos golpes infinitos que constituem a natural herança da carne, é solução para almejar-se. Morrer.., dormir... dormir... Talvez sonhar... É aí que bate o ponto. O não sabermos que sonhos poderá trazer o sono da morte, quando alfim desenrolarmos toda a meada mortal, nos põe suspensos. É essa ideia que torna verdadeira calamidade a vida assim tão longa! Pois quem suportaria o escárnio e os golpes do mundo, as injustiças dos mais fortes, os maus-tratos dos tolos, a agonia do amor não retribuído, as leis amorosas, a implicância dos chefes e o desprezo da inépcia contra o mérito paciente, se estivesse em suas mãos obter sossego com um punhal? Que fardos levaria nesta vida cansada, a suar, gemendo, se não por temer algo após a morte - terra desconhecida de cujo âmbito jamais ninguém voltou - que nos inibe a vontade, fazendo que aceitemos os males conhecidos, sem buscarmos refúgio noutros males ignorados? De todos faz covardes a consciência. Desta arte o natural frescor de nossa resolução definha sob a máscara do pensamento, e empresas momentosas se desviam da meta diante dessas reflexões, e até o nome de ação perdem.
Qualquer um percebe que Shakespeare, pela boca do príncipe dinamarquês Hamlet, está falando sobre a questão da existência, que seria, séculos depois, ecoado por Camus na sua famosa primeira frase de "O mito de Sísifo" ["o suicídio é a única questão filosófica verdadeira"]. Ele já sugere que, diante do duro destino que nos é reservado, ou do "fado [que é] sempre adverso", por que deveríamos continuar?, respondendo que é a consciência, o refletir, o pensamento quem "definha" essa "resolução" via punhal, já que os males do outro lado, do lado da morte, não são conhecidos.

A questão existencial, porém, não é a única forma de pensar esse assunto, entre ser e não ser. Temos a tradição, via pensamento ocidental-judaico-cristão, de imaginar nossa existência como algo parado, estático, imóvel. Seríamos sempre a mesma pessoa independentemente do "escárnio" e dos "golpes do mundo" que temos que suportar diariamente. Quando, na verdade, isso não ocorre, já que as "empresas momentosas se desviam da meta diante dessas reflexões". Temos, sim, uma identidade a que recorremos para sabermos quem razoavelmente somos, mas essa identidade é bem mais flexível do que supõe nossa vã filosofia.

Esse papo de flexibilidade, de "modernidade líquida" [que eu não li] é muito criticado hoje em dia em que termos como "pós-modernidade" são vistos como, quase, uma chacota. Na verdade, na minha mais que humilde opinião, realmente não viveríamos nada muito diferente da modernidade, ou o que tradicionalmente associamos à modernidade, apenas que essa modernidade, como dito lá em cima, estaria muito gasta. Após anos explorando os mesmos critérios, os mesmos ideais, chegamos a um ápice, que ao mesmo tempo é a maior representação da modernidade e, por outro, já demonstra a fragilidade do argumento. Momento, arrisco, de uma grande transformação.

Essa "modernidade esgarçada" nos deu, no entanto, a capacidade de trafegar entre grandes paradigmas identitários, sem que isso nos marque profundamente a alma. Vejamos um exemplo prático, para não ficar apenas na teorização. Imagine que você more fora do país. Num lugar tipo a Dinamarca, terra de Hamlet, por um tempo específico, para estudar, fazer um mestrado. Você nasceu brasileiro, mas não está brasileiro. Você está estrangeiro, igual a muitos outros lá. Naquele momento, você se identifica, sua identidade, é a do outro, daquele que não é dinamarquês. Ou seja, apesar de "ser" brasileiro, neste momento específico, você "não é" brasileiro.

Há outros casos, um pouco mais complexos, mas que eu gosto muito, e que têm me acompanhado recentemente. Se acompanharmos o pêndulo que vai de Nietzsche a Heidegger, podemos ver que, se um lado afirma a vontade de potência como princípio fundamental da vida, o outro demonstra a nossa forte dificuldade de interagir no mundo sem objetificá-lo, sem torná-lo objeto de nossas vontades.

Interpreto esses dois pensamentos, junto com a ideia de ser e não ser, como a necessidade de em alguns momentos você se impor, tentar colocar sua vontade em prática, torná-la real, factível - que é quando nós batalhamos para completar nossos sonhos, nossas vontades. Que é quando deixamo-nos existir.

Mas insistir em completar a sua vontade, dentro de uma sociedade complexa, e sem levar em conta a vontade do outro, é uma das formas de tirania que existem. É o praticar d'"as injustiças dos mais fortes, [d]os maus-tratos dos tolos". Temos que, sim, tentar tornar verdade, fato nossas vontades, mas saber que o outro também tem sua individualidade e que ele tem todo o direito de ignorar as nossas próprias vontades. Só nos resta, nesses casos, sofrer a "a agonia do amor não retribuído", e torcer para que isso passe o mais rápido possível. Há momentos em que é necessário o "não ser". O esperar, o exercício do "mérito paciente".

A opção entre ser e não ser, essa escolha entre o existir ou não, entre o colocar em prática sua vontade, ou recolher-se até a tempestade passar, pode resolver muito dos nossos problemas atuais, em que acreditamos ser, sempre, o centro das atenções - ou, no mínimo, deveríamos ser, por uma questão de justiça. Não resolveríamos todos os problemas, certamente, nem, ao menos, nos livraríamos da sina de criar novos problemas, que nem imaginávamos possível [questões de identidade, neuroses aflitivas, etc.]. Mas temos que errar sempre erros diferentes, não é mesmo?

De qualquer forma, é bom deixarmos claro, para nós mesmos, que dentro de uma sociedade conturbada como a nossa, temos limites, nebulosos limites que não se apresentam como tal. Com o passar do tempo e aos poucos, conseguimos vislumbrar suas características e podemos agir com o fim de o evitarmos ou simplesmente o aceitarmos. Com a convivência com o outro, criamos essa inteligência emocional, que nos demonstra quando, exatamente, podemos ser, e quando devemos não ser. Estou, neste momento, de fins de ano, suspeitando fortemente que esta é a verdadeira sapiência do homem. A única que não se aprende.

***

ps. Eu sempre achei curioso algumas línguas não terem a diferenciação entre "ser" e "estar". Acontece ao menos no inglês, francês e alemão - entre as que eu tenho alguma noção. Já escrevi isso inúmeras vezes, e repito agora: Borges sempre lembrava desta diferença, entre o "existencial" [ser] e o "circunstancial" [estar], entre aquilo que nós éramos, que nos definia, e aquilo que nós poderíamos, de acordo com outros fatores, ser, ou não. Daí, eu sempre imaginei como seria a tradução do mais famoso dos versos de Shakespeare não por "ser ou não ser", mas por "estar ou não estar". Heidegger poderia entrar na roda, com uma nova versão do agora chamado "Estar e tempo". Combinaria bem com esse período de modernidade esgarçada.

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