quarta-feira, 16 de abril de 2014

A imaginação

Qual é a vantagem de se escrever mal? Poder escrever o que quiser, sem se importar com os eventuais e exigentes leitores. Aproveito essa minha sorte para recomeçar a contar uma ficção, que foi iniciada há quase dois anos, ou muito antes disso, porque eu preciso terminá-la. Esse trecho abaixo é um capítulo chamado "Imaginação". Para ler outros trechos, clique aqui.

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A imaginação usa traços da memória? É possível imaginar algo que não tenha qualquer relação com a memória? Algo que não tenha raízes em algo vivido, experimentado antes? Algo que simplesmente aparece, do nada? Sem qualquer ligação com o que já tenha sido estabelecido? Como os índios enxergaram as caravelas quando os primeiros europeus aportaram? Como traduziram em suas línguas? Como criaram os códigos para compreender o absurdo? Misturaram o que já existia ou inventaram um novo som para falar sobre a nova visão? Como seria para nós ter contato físico e doloroso com uma quarta dimensão além das três mais tradicionais? Como enfrentar o horror que nos emudece? Como nomear o inominável?

A imaginação só pode trabalhar a partir da memória, mesmo que residual. Mesmo que seja apenas no formato da linguagem. A memória é quem dá as ferramentas para a imaginação criar algo que não havia antes. E cria por meio do pensamento, que retrabalha a memória, a coloca fora da ordem, a mistura aleatoriamente, como um sorteio de cartas e, assim, alcançar algo que até pode ser sem uma lógica cotidiana, comum, que as pessoas não conseguem reconhecer facilmente. Isso é o novo. Não necessariamente acontece. Às vezes, tentamos esconder algo e esse algo aparece, como um convidado indesejado em uma festa, que faz de tudo para chamar a atenção para si, contra a vontade dos anfitriões. De toda forma, a imaginação, seguindo esse raciocínio, seria tão real quanto qualquer relato que se propõe preso aos fatos. Essa ideia é totalmente possível ou é apenas uma utopia? Talvez, no caso da imaginação, não haja correspondências diretas, mas se pegarmos caminhos não-óbvios, os atalhos-pelo-contrário – aqueles que demoram mais tempo, mais longos, mas que são tão mais bonitos – vamos perceber que está tudo fundado na nossa vivência, no que nos construímos, ou fomos des-construídos.

E se a memória falha, se ela não aparece quando precisamos dela? Quando queremos usá-la para recontar um momento da História em que fomos testemunhas, ativas e passivas? O relato pode ser feito sem memória? Ou ela aparece, de alguma maneira, mesmo que misturando os canais de origem? O que foi vivido na pele, diretamente, sem intermediários, se envolve com o que foi escutado, com o que foi lido, com o que foi presenciado, com o que foi percebido, com o que foi sentido, como tintas diferentes que vão dar a cor da vida, de como nos lembramos da vida que vivemos. Não há nada original, porque já partimos de um porto conhecido e caminhamos sobre as línguas dos mortos.

Os acontecimentos estão cada vez mais no fundo da minha memória, perdidos, escondidos, encobertos por anos de poeira, de uma poeira que resiste até a água, e eu tenho que ser um escafandrista que mergulha em apneia para buscar esse tesouro perdido, sem poder usar nem  mapa.

Percebi que esse problema da memória não é só meu, mas generalizado. Perdemos a capacidade de armazenar nossos próprios dados. Terceirizamos os nossos registros, deixamos de exercitar esse músculo que deve ser exercitado sempre, senão atrofia. Foi o que aconteceu, desde a geração da minha filha, que utiliza tipos de discos rígidos externos para guardar o que acham que é importante. Discos rígidos, no início, já há bastante tempo é o que eles chamam de nuvem, esse éter que veio para substituir o paraíso bíblico e nos trouxe bastante conforto, sim, claro, de ter acesso a qualquer informação a um clique, mas também dor de cabeça, principalmente porque não conseguimos mais lembrar coisas tão simples, como o nome de um escritor, de um livro, um poema, um verso. Perguntamos ao oráculo internético sobre o passado, como antigamente os gregos perguntavam sobre o futuro.

Fico olhando para a janela aqui de casa, sem enxergar nada, tentando afundar mais e mais na minha memória, como o escafandrista, prendo o ar, perco o ar, fico confuso, e volto à tona para tentar respirar um pouco, perdendo o fio, que some, como uma cobra ao ser descoberta em seu habitat. Volto, afundo, prendo de novo a respiração, procuro uma referência, deixo o meu pensamento ser carregado pela corrente, vem à minha frente uma suspeita, libero o meu corpo, tento relaxar novamente, começo a visualizar um rosto, o contorno de uma cabeça, os traços sendo desenhados automaticamente, como mágica, como num computador sem cursor, o corpo começa a se materializar, tomar uma forma, mesmo que esfumaçada, como um personagem de um filme que ganha uma nova vida, e então me sinto enjoado, sem oxigênio, e perco novamente as pistas, os detalhes, as referências e o corpo se desmaterializa, some, evapora, puf! Pronto, não tenho mais qualquer imagem. Dói a minha cabeça e fico cansado, como se tivesse corrido quilômetros.

Tenho que aceitar os meus limites, perceber que, mesmo que não consiga alcançar tudo, lembrar de todas as coisas, de todos os detalhes, isso não é o fim do meu mundo. Sem a memória não se tem elementos para se comparar, para ter parâmetros, para descobrir uma outra forma de viver, mas a lembrança, além de ser construída e editada por nós mesmos – é possível se lembrar de tudo? – a memória não deixa de ser um jogo que nós jogamos conosco mesmo, de adivinha, em que viramos cartas com conexões e fazemos uma linha de um lado para outro.


Lembrar-se de tudo é perder a capacidade de abstração. E abstrair é indispensável para formular conceitos que não estavam dados antes. Talvez por isso que eu consiga escrever tanto sobre absolutamente nada.

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