terça-feira, 29 de abril de 2014

O fundamento de toda a vida para Heidegger: a morte

Em uma possível interpretação, o que foi chamado por Heidegger na palestra que se transformou no livro "O conceito de tempo" de "trânsito" - mas que a tradutora Irene Borges-Duarte lembra que é um tipo de sinônimo de passamento, do porvir - seria a única certeza dentro da completa incerteza que é a vida. Incerteza porque incapaz de a partir dele determinar um caminho a se seguir. Mas, mesmo com essa impossibilidade, temos, ao menos, uma certeza, ou algo que nos une, um mínimo, um chão em que todos pisamos: a morte. Como se dissesse o óbvio com palavras rebuscadas: todos seguimos para o passamento, para a morte, mas até lá, ninguém sabe ao certo o que acontece.

[Safranski na biografia do Heidegger diz que o filósofo de Meßkirch começou a criar neologismos e retrabalhar a língua para falar sobre coisas simples de maneira difícil. O curioso é que o plano funciona - para mim, ao menos. De tão novo que é essa língua, que é muito alemã, com toda a sua lógica matemática, me faz prestar muito a atenção, me deslocando de onde estou para dentro dela.]

De posse desse fundamento mais fundamental, a base que compartilhamos entre os seres viventes, fica a questão, a única questão: seria possível construir uma ontologia a partir dele? Ou seria frágil demais isso? Ou, teria sido exatamente isso que Heidegger fez e eu, que ainda não li "Ser e tempo", não saquei ainda? Suspeito dessa última proposta principalmente pelo fato de ele dizer que não havia mais nada que pudesse nos salvar [lembrai da famosa última entrevista dele], e como a filosofia, dentro desta interpretação, teria tido fim com Nietzsche. Seria por isso que Hannah Arendt teria optado, então, por ser qualificada como cientista política, em vez de filósofa? Ela, assim, ainda proporia uma participação no mundo.

De toda forma, esse "primeiro Heidegger" ainda está imbuído da vontade, da paixão, que seduziu Hannah Arendt e tantos outros alunos - e alunas. Ele não se mostra derrotado [nunca se mostrou], nem blasé, ao se afirmar em um mundo sem qualquer parâmetro fixo. O epílogo escrito pelo editor alemão Hartmut Tietjen defende que este curto texto de 1924 conseguiu já apontar os grandes temas que Heidegger iria expor em toda a vida, argumentando, inclusive, que conteria os assuntos que Heidegger teria prometido escrever em seu "Ser e tempo" e não tinha conseguido colocar nas suas cerca de 600 páginas.

O que Heidegger defende não é nada macabro, pessimista, muito menos niilista - nem existencialista no sentido sartriano, parece. Ele mesmo lembra em vários momentos que o pessimismo não faria sentido, já que seria uma fantasia da realidade. O que ele estabelece é a nossa única certeza, de onde sabemos que não podemos escapar. Lembra que essa certeza nos dá parâmetros, nos dá uma medida para saber qual é a importância dos detalhes do cotidiano, de uma maneira que lembra de leve o que eu chamo ironicamente de ideal categórico amoral do eterno retorno nietzschiano. Faça aquilo que lhe é verdadeiro, se possível.

Sugere que não nos guiemos por qualquer tipo de obrigação moral, de ser algo imposto de fora para dentro, já que a sociedade, que ele apelida com um palavrão "Miteinandersein", que foi traduzido por "ser-uns-com-os-outros", seria impessoal. Antes de citar [para dar um piscadela que pode soar pedante, mas não é a intenção], uma pequena explicação: Heidegger chama o ser humano de Dasein, que numa tradução comum seria ser-aí - "aí", no sentido de sermos dentro da temporalidade. Em outras palavras: somos, existimos, em todos os instantes [outro palavrão heideggeriano: respectivamente-em-cada-momento]. Finalmente, de posse dessas informações, vamos ao momento citação [não tenham medo e encarem]:
O ser-aí, determinado como ser-uns-com-os-outros, quer, simultaneamente, dizer: ser conduzido pela interpretação dominante, que o ser-aí dá de si mesmo, daquilo que se diz, pela moda, pelas correntes, pelo que dá que falar: as correntes não são ninguém; aquilo que é moda - ninguém. Na quotidianeidade [a tradução é portuguesa!], o ser-aí não é o ser que eu sou; antes, pelo contrário: a quotidianeidade do ser-aí é esse ser que se é. E, por conseguinte, o ser-aí é o tempo em que se é uns-com-os-outros: o tempo-impessoal. O relógio, que se tem, cada relógio mostra o tempo do ser-uns-com-os-outros no mundo.
Numa tradução da tradução, mastigando para só engolir [o que não é aconselhável, mas vamos relevar hoje]: O ser humano, quando agindo de acordo com a opinião de outros, é conduzido pela interpretação, que o ser humano acredita existir, do que ele ouve, pela moda, pelas correntes, pelo que dá o que falar. Mas esses elementos são impessoais: não há ninguém por trás da moda, das correntes, do hype. No dia-a-dia, no cotidiano, o ser humano não é ele mesmo, não é autêntico, não se mostra claramente. Daí a impessoalidade desse tempo. E, claro, o relógio é a marca desse tempo, que não respeita as vontades, os tempos de cada um.

Hoje, esse tipo de raciocínio pode ser interpretado como extremamente egocêntrico, individualista, distante do mundo real. Considerando que vivemos em um tempo em que essas qualificações se transformaram em hegemônicas, pode parecer contraproducentes pensarmos em adentrar ainda mais esse aspecto, pode parecer que queremos aumentar a ferida que já sangra em borbotões. Se for esse o caminho da sua interpretação, vou parafrasear Chico e dizer que "Para um coração mesquinho / Contra a solidão agreste", além de todos os músicos citados em "Paratodos", Hannah Arendt, e o seu conceito de político, "é tiro certo". Mas nem acho que o caso é esse.

Talvez ele interpretasse que a onda individualista atual é exatamente isso: uma onda. Uma moda, uma corrente. Que devemos ter a noção do nosso fundamento mais fundamental em todos os momentos: vamos morrer. Não sabemos quando, não sabemos como. E, de posse dessa informação, que estaria conosco, hum, respectivamente-em-cada-momento, viver. Até a morte, o que nos resta não é - necessariamente - nos isolar, sair do mundo, nos transformar em misantropos, se assim não for o chamado da sua [minha, nossa] autenticidade. Devemos apenas, não tentar responder "o que é a vida?", mas "como é a vida?".

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