segunda-feira, 7 de abril de 2014

Prólogo, 'desironia'

Qual é a vantagem de se escrever mal? Poder escrever o que quiser, sem se importar com os eventuais e exigentes leitores. Aproveito essa minha sorte para recomeçar a contar uma ficção, que foi iniciada há quase dois anos, ou muito antes disso, porque eu preciso terminá-la. Esse trecho abaixo é o Prólogo. Para ler outros trechos, clique aqui.

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Como fazer com que uma culpa suma de dentro da gente? Dividindo ela em pequenos pedaços? Distribuindo a quem quiser gracejar toda a minha desgraça? Todo o resultado de uma escolha errada – errada nem chega perto de alcançar o que aconteceu verdadeiramente? Se eu ao menos pudesse voltar no tempo, se pudesse consertar, se pudesse mudar o que eu disse, trocar os sentidos, inverter as ordens... eu talvez ainda tivesse culpa, mas não tanta culpa. Se eu pudesse voltar no tempo e ficar quieto! Se não tivesse falado nada... eu... eu não teria culpa. Eu não estaria aqui para contar essa história. Não haveria história.

O deus do tempo me colocou dentro de um círculo fechado, aprisionado para sempre em um globo da morte. Eu ando em volta de mim mesmo, vivendo tudo, como sempre foi, sem conseguir parar essa engrenagem, que não me deixa respirar. Eu existo de maneira igual ao meu passado que não passa e se faz presente. Eu me prosto, meus dentes rangem. Não consigo me livrar.

Como um só acontecimento pode marcar tão profundamente e para sempre uma vida? Como um instante, que poderia ser tão fortuito, vai se desenrolando, sem que se perceba, rumo a uma tragédia? Por que eu agi num moto contínuo, sem parar para meditar sobre o assunto, sem duvidar o suficiente de mim mesmo? Por que, então, e só então, eu quis acreditar em algo? Não era inevitável? Em algum momento eu poderia ter caído fora? Em que momento, além do inicial sim ou não, que admite a possibilidade dos dados serem arremessados para o alto, eu poderia ter interrompido a descida da pedra que empurrava morro acima? Eu mirei lá no alto, roubei o fogo dos deuses, e sofro fisicamente suas consequências.

Eu carrego minha história nas costas. Minha coluna envergou e está para quebrar. Como salvar a minha alma? Será que um dia eu vou voltar a dormir? Tomo remédios como se fossem balas açucaradas, sem efeito. Será que um dia vou parar de escutar os gritos, meus próprios gritos, e o grito inaudito do mundo? Eu deveria ter gritado até perder a voz. Quero estampar esses gritos, torná-los sólidos, palpáveis. Afogar seu som em papel sem celulose. Dar à luz, tirar de dentro de mim. Entregar o fogo aos homens para que eles me queimem em praça pública.

Não adiantou falar. Frequento o divã há já duas décadas. Mudei de psicanalista para terapeuta experimental. Esse exercício é a mais nova tentativa, sugerida pela mais recente, que se intitula esquizopsicóloga, de ordenar esse meu passado, torná-lo algo com um pouco mais de sentido. Colocar esses eventos que pipocam como fungos no meu inconsciente dentro de uma cronologia. Olhar para as cenas mais duras e perceber que fechar os olhos não vai fazer com elas sumam. Ao contrário. Continuam acontecendo na escuridão.


Essa é a história de uma verdadeira mentira.

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