segunda-feira, 14 de abril de 2014

Recalque

Qual é a vantagem de se escrever mal? Poder escrever o que quiser, sem se importar com os eventuais e exigentes leitores. Aproveito essa minha sorte para recomeçar a contar uma ficção, que foi iniciada há quase dois anos, ou muito antes disso, porque eu preciso terminá-la. Esse trecho abaixo é um capítulo chamado "Recalque". Para ler outros trechos, clique aqui.

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Será que eu estou escondendo, ou tentando esconder aquela cena, aquela sequência de cenas que permanecem dentro de mim, e que não vão embora? Será que ao não falar sobre isso, eu não estou apenas me enganando, fingindo que está tudo bem? Devo mudar de foco ou focar totalmente nisso? Pensar no assunto também não é uma forma de masoquismo? Não somos feitos de outros assuntos, de outras questões que nos formam? Mesmo quando o trauma é grande, quando a dor é imensa, quando a culpa nos destroça, será que temos o direito de viver outra vida, de continuar a viver? Ou devemos revisitar o assunto de maneira eterna, de forma que ele não passe, não fique para trás? Será que devemos pagar essa conta eternamente? Será que quando admitimos que fizemos algo grave, que acabamos com a vida de quem mais gostávamos, por pura vaidade, será que não devemos algum tipo de homenagem? Não devemos oferecer nossa vida em sacrifício?

Os deuses trágicos parecem insaciáveis, porém. Não adianta oferecer algo que eles não querem. Não adianta dar a minha vida em troca de outra vida, não é assim que funciona. Eles não se importam com a minha vida nem com a de ninguém. As vidas e as mortes para eles são inevitáveis, amorais. O que eles querem é que eu siga, enfrente o meu destino, e não adianta eu desviar do caminho, eles vão dar um jeito de me avisar que eu não estou onde eu deveria estar. Eles avisam que é impossível fugir de mim mesmo. O mais longe que eu for, ainda estarei comigo.

Como enfrentar esse destino, então? Como mostrar essa fraqueza, essa humanidade diante de um mundo que não admite essas hesitações? Saindo do mundo para ficar consigo mesmo? Mas como sobreviver, na prática? O mundo exige uma série de obrigações, o mundo é maior que eu e você, e minhas memórias, o mundo, essa criação dos deuses, é voraz, vai em frente, sem pensar nos seus habitantes. Não há bom ou mau, há o movimento, que continua e que não podemos fazer nada, além de tentar nos adaptar a ele.
Isso é muito difícil e não sei como vou conseguir. Ou se vou conseguir. Não há um manual, não há uma forma de viver, o destino não está sinalizado, e as estradas, todas, parecem cheias de espinhos, que não nos deixam ficar parados, nem descansar.

Será que temos que descobrir algo em si, algo dentro de nós mesmos em que acreditamos? Algo que pode ser pequeno, algo que não necessariamente é uma verdade para os outros, algo que nos faz ver além de nós mesmos, de nossa carne, que nos expande, que nos torna maiores? Uma atitude cuja consequência imediata é o oposto daquela que você queria, e que você vai encarar diariamente e de maneira sempre dolorosa suas possibilidades. Uma decisão, que não deve ser fácil tomar, não é, não é simples, e que também traz muito sofrimento, que, só de pensar em seus resultados, de agora e de sempre, já nos arrasa de uma maneira inigualável, porque somos medrosos, sou um medroso, nos leva para baixo, desce a ladeira, mostra que o fim não tem fim, que podemos descer eternamente, mas que, ao menos, ao tomar essa decisão, ao saber que essa decisão é sua, e de mais ninguém, isso dá um pouco de confiança, uma confiança que não é comum, ao menos para mim, que nos dá esperança, que parece que, mesmo que essa situação, essa sensação seja a do fundo, a do fim, a pior derrota que se passou, que nada pode ser mais doloroso, parece, por outro lado e de maneira muito estranha, que não será eterna, porque foi você quem decidiu. Porque a vida é minha. Porque eu não posso fugir dela.

Vou morder mais forte o ar até que o meu maxilar fique com câimbras. Vou escrever esse livro.

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